O primeiro MIMO que, com reflexão e aprendizagem, promete fazer do Porto um mimo

por Lucas Brandão,    26 Setembro, 2022
O primeiro MIMO que, com reflexão e aprendizagem, promete fazer do Porto um mimo
Branco no MIMO / Fotografia da organização do festival
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Um ponto prévio que deve ser assinalado: não desfrutamos ao máximo das potencialidades deste festival que nasceu em solo brasileiro e que andou por Amarante durante uns anos, chegando, pela primeira vez, ao Porto este ano. Não fomos a concertos em recinto fechado — não demos pela necessidade de reservar bilhetes para o efeito e, quando o vimos, estavam esgotados —, não fomos aos workshops ou às demais (e interessantíssimas) iniciativas culturais, mais vocacionadas para a partilha de ideias e de experiências musicais e artísticas. No entanto, não pudemos deixar de comparecer em alguns dos concertos principais no Largo Amor de Perdição, mesmo em frente da antiga Cadeia da Relação — agora o Centro Português de Fotografia —, contíguo ao Jardim da Cordoaria.

No primeiro dia, quisemos ver com atenção Mário Lúcio e Chico César. Também por isso os espectadores que se foram aglomerando no recinto falavam português do Brasil e se sentiu, de verdade, muito mais o Brasil que Portugal, para além dos demais (habituais) estrangeiros; estes curiosos pelo grande palco que se havia instalado naquele jardim e sem saber do que se tratava. Não só pelo próprio conceito do evento, mas também pelo facto do poder pessoal de Chico César. Mas vamos por partes. Nesse grande palco, fomos recebidos pelo DJ Farofa, também ele canarinho, um habitué no MIMO e que nos deu as boas-vindas com uma coletânea de pérolas da música popular brasileira. Avistamos, entretanto, as típicas barracas de comes e bebes, para além de postos de informação e de lojas que se iam prolongando desde a Igreja do Carmo até ao Largo da Cordoaria.

Depois desse arranque caloroso de Farofa, chegaram os Kriolos de Mário Lúcio, a banda deste artista caboverdiano que trouxe as fragrâncias da morna, do choro e da coladeira com um especial beat, que foi bem adaptado à disponibilidade imensa do público de dar um pé de dança. Mário Lúcio, que saudou e interagiu profundamente com um público multicultural que o escutou e que o adorou. O caboverdiano tomou partido desta oportunidade para disponibilizar várias das canções do seu novo disco, “Migrants”, com base no drama migracional do Mar Mediterrâneo, no qual não é raro haver mortes a tentar fazer a travessia de África para Europa, com recursos muito limitados de transporte. É essa propensão social que faz de Mário Lúcio um artista evoluído, até erudito, mas também capaz de ser ovacionado pelas massas, como foi o caso.

Depois de mais um aconchego vindo de Farofa, fomos ter à grande atração da noite, de seu nome Chico César. Um nome que mobilizou muita gente sua compatriota afeta à causa de Lula da Silva, contra o governo vigente de Jair Bolsonaro. Fomos ter às canções mais conceituadas do seu repertório, como “Mamã África” ou “Deus Me Proteja”, mas também a alguns dos novos temas do seu novo álbum, “Vestido de Amor”. Desde a canção de fecho, “Bolsominions”, que já traça uma crítica sociopolítica mordaz, revestida de oposição a Bolsonaro, também houve oportunidade de chamar ao palco Ray Lema, que veio um dia mais cedo e com quem partilha a autoria da faixa “Xango, Forró e Ai”. Foi, evidentemente, o momento da noite, tanto pela relevância que foi granjeando ao longo dos anos, como pela força do público que, por entre álcool, tabaco e algo mais — cuja fragrância, sem dúvida, tornou a experiência de dançar e de desfrutar plenamente do concerto muito menos agradável —, fez emanar o pulmão do Brasil em plena Cordoaria.

Não ficamos até ao fim em Asa, a cantora franco-nigeriana que trouxe um misto de R&B, soul e afrobeat, mas denotou-se um certo arrefecimento a que o R&B nem sempre escapa ileso, por se tornar bem mais íntimo e aconchegado. Assim, seguimos para o segundo dia já mais conscientes daquilo com que podíamos contar, embora com um alinhamento diferente. Aproveitamos, de igual modo, para conhecer melhor os cantos à casa e perceber a organização do espaço, desde as mesas de refeição em pleno corredor do Jardim da Cordoaria até às diversas casas-de-banho existentes e bem cuidadas e mantidas, dado que a necessidade assim nos obrigou a conhecer.

Ficamo-nos, de novo, pelas incidências no grande palco e fomos recebidos pelo DJ Mam, que também não é presença incomum pelas bandas do Mimo. À imagem de DJ Farofa, também ele abriu o livro de grandes hits do Brasil, para além de ostentar um chapéu e umas “lunettes” como se fosse um membro dos Empire of the Sun. Deu para vibrar antes e entre todos os concertos que se viriam a proporcionar naquela noite um pouco menos ventosa que a anterior. O frio não se fez de rogado, em especial para quem trazia as pernas descobertas. No entanto, foi só psicológico, já que quinze minutos de dança resolveram logo a questão. DJ Mam, que muito fez as delícias do público e que ergueu uma bandeira do humorista Gregório Duvivier.

Começamos com a primeira das surpresas da noite, os Daoud, uma dupla argelino-tunisina de intérpretes de oud, um instrumento de cordas com proveniência magrebina, do norte de África. Porém, para quem não conhecia, houve espanto quando, para lá dos ouds, ouvimos um estremecer eletrónico naquele largo. Tornou-se uma corrente de energia e de vibrações intensa e profundamente dançável, onde o menear do corpo foi espontâneo, livre e, por vezes, desmedido. De igual modo, deu para admirar as expressões fractais e abstratas que iam aparecendo no ecrã, que correspondiam ao pulsar neurológico e cardiorrespiratório que fluía em cada um de nós. Um convite a explorar um pouco mais desta fusão entre a música eletrónica e a música do mundo, espalhada um pouco por todo o globo, onde estes foram (só mais) um exemplo do quão agradável e transcendente pode ser este diálogo. Um convite, de igual forma, e este em particular, de perceber o que tem sido feito por países árabes (o sucesso que tem feito Omar Souleyman é marca dessa necessidade de se conhecer mais e melhor) e por esta dupla, que aguçou o apetite num possível regresso — quiçá num outro palco e em nome próprio.

Outra surpresa foi Ray Lema. Para nós, que o tínhamos conhecido somente em traçados acústicos, à imagem do que havia trazido para o concerto de Chico César no dia anterior. Aqui, porém, trouxe o que de melhor há no afrobeat e no highlife (embora este género seja ganês, não deixa de ter traços em comum um pouco por toda a África, no funk das suas diversas comunidades), vindo da experiência e da convivência com alguns dos melhores nomes destes géneros, como Manu Dibango, dos Camarões. Em suma, um pouco aquilo que é o soukous, um dos géneros musicais mais célebres do próprio Congo Contando com instrumentos de sopro, bateria e de cordas, para além de um par de cantores muito carismáticos, assistimos a uma grande banda a dar espetáculo e a confirmar a pista de dança que se havia imposto naquele largo, na rua e no outro lado do passeio, no jardim. O repertório, embora maioritariamente desconhecido ao público geral, foi muito acarinhado e assumido como se o conhecêssemos há anos. Mais uma prova cabal da essência do MIMO, que traz multiculturalidade e música do(s) mundo(s).

DJ Mim prolongou-se no intervalo e o concerto de Branko só começaria quase à 00h30. Porém, foi como se um filho à casa tornasse, emergindo num público que exultava pela sua presença e pela sua eletrónica cada vez mais com sabor a subúrbios portugueses, sem esquecer a multietnicidade, e até a uma certa etnografia, espalhando-se pelo país e pelo seu interior — reflexo disso é o seu novo disco, “OBG”. Branko, num Porto que considerou a cidade ideal para fechar o Verão e cujo público saudou regularmente — trouxe à mesa essa mescla de sonoridades e algumas velhas conhecidas, dos seus primeiros trabalhos a solo, com a alegria de ver Dino d’Santiago e Mallu Magalhães na tela sempre em transformação. A festa ia longa, a dança imparável, mas, pelos bastidores, iam-se sucedendo solicitações de diminuições de volume por parte da polícia (talvez — e aqui especulamos — por razão de haver locais residentes um quarteirão abaixo e que poderão não ter gostado da eletrónica a bombar e a ecoar por aquele quilómetro quadrado).

Mal começou o terceiro set, na tão acarinhada “Reserva pra Dois”, o som foi cortado e Branko, frustrado e arreliado, tentou compensar interagindo com o público e fazendo-o saltar e sentir o clima de festa. No entanto, prometeu vingança para um futuro concerto e, apesar de, a frio, se compreender o sucedido, ficou essa sensação sensaborona da festa ter ficado a meio. Porém, e citando o Jornal de Notícias, “não foi, de facto, a polícia a interromper o som do espetáculo, mas sim os funcionários da Ágora, a Empresa Municipal da Câmara do Porto, em nome da qual estava emitida a licença e cuja autorização estabelecia a 1 hora da madrugada como horário de fecho do concerto. Ainda assim, Branko, que entrou em palco atrasado, ainda tocou até cerca da 1.20 horas.”

Um ponto menos bom que merece suscitar reflexões para o planeamento futuro do evento — não só o cumprimento de horários, mas, talvez, um escalonamento mais equilibrado ou, até, procurar outros lugares de um cada vez mais gentrificado centro histórico para poder materializar o evento.

Para o terceiro dia, não quisemos perder a voracidade do cada vez mais metamorfoseado Emicida, uma autêntica estrela no seu país. No entanto, dado o forte contingente brasileiro que por cá vem marcando presença (e residência) — à imagem do que vimos com Chico César —, era certo que teríamos uma excelente casa para assistir ao rapper. E assim foi, embora não tão pujante como a dos dias anteriores — talvez por ser num domingo —, mas que não deixou de se mostrar com uma força impressionante. Assim foi, de igual modo, com a artista que o antecedeu, a carismatiquíssima KT [lido keeta] Gorique, a suíço-costamarfinense que trouxe o fervor dos sound systems — atualmente, autênticas manifestações da música reggae e do seu descendente europeu, o dancehall — que povoou o Jardim das Virtudes nestes dias — não estivemos por lá, mas vimos à distância o contingente de gente que se agrupou. Gorique, como se diz em bom português, “partiu a loiça toda” e mobilizou o público de uma forma contagiante e impressionante. Um hip-hop transformado e enlevado por essa herança dos sound systems e das suas esfuziantes celebrações da cultura rastafari e dos seus parentes.

Foi com (mais) uma agradável surpresa que partimos para a grande cabeça-de-cartaz deste evento: o rapper Emicida. No entanto, é redutor chamar a Emicida somente de rapper. Não obstante ter mostrado os seus predicados líricos e rítmicos, tanto no início como no fim do concerto, assistimos a algumas sonoridades diferentes, que cruzam o samba, o MPB e outras expressões mais deslocalizadas e posicionadas em várias regiões do Brasil. De novo, foi o Brasil a tomar por sua conta aquele pedaço de território português e portuense e foi o Brasil que se exprimiu com sintonia e com admiração para um dos seus filhos pródigos mais familiares. Emicida, que sente o Porto como uma das suas casas e que fez questão de assinalar isso, assim como a necessidade de ir votar no próximo dia 2 de outubro, contra Bolsonaro e os seus bolsonaristas, que pertencem ao passado. De igual modo, um sentido apelo ao amor e a cuidarmos do outro, daquele que está ao nosso lado. Também por isso fomos convidados a abraçar o vizinho do lado e a sair nesse clima de amizade e de comunhão, ao som e no movimento do voo de um “passarinho”, o mesmo que encerrou o concerto no seu encore e o próprio festival.

A primeira edição do MIMO no Porto decorreu de forma natural. A identidade deste festival encaixa que nem uma luva naquilo que é a realidade atual da cidade, cada vez mais cosmopolita, movida pela atividade turística, e com uma comunidade brasileira também bem crescente. Uma panóplia de atividades diversas, que merecem ser exploradas e ainda mais incentivadas, para lá dos concertos que, evidentemente, são o grande aliciante deste certame. Em jeito de balanço, foi um mimo poder emergir em tantas e tamanhas sonoridades, com nomes emergentes, outros bem conhecidos e ainda outros autênticos tesouros em busca de serem redescobertos. Fora a mancha “branka” do segundo dia, a expectativa fica em lume brando para ver que cardápio virá para a mimada edição de 2023. Aguardamos por esses mimos, enquanto outros tantos ficam por serem conhecidos e descobertos.

O presente artigo foi editado na terça-feira, dia 27 de setembro, com informação esclarecida e devidamente referenciada quanto ao motivo por detrás do corte do som do concerto de Branko.

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