O quadrado de Ana Lua Caiano está cada vez maior
Nem há dois anos, estava Ana Lua Caiano (ler entrevista) a subir ao palco do clube B.Leza, em Lisboa, para apresentar o seu primeiro EP, Cheguei Tarde a Ontem, lançado perto do final de 2022. Desde então, a ascensão da jovem artista tem sido vertiginosa, com o lançamento de mais um EP e, agora, do seu álbum de estreia Vou Ficar Neste Quadrado a conquistar fãs em Portugal e além-fronteiras. O seu nome parece estar por todo o lado e, como o novo concerto (desta vez esgotado!) que deu no B.Leza no passado dia 11 de Abril provou, é inteiramente merecido.
Apresentando-se no seu já reconhecido modo one woman show, munida de um sintetizador, uma loop station, um microfone, um bombo, um adufe e outros instrumentos de percussão, Ana Lua subiu ao palco para uma setlist que percorreu um pouco de todos os seus lançamentos. Cada canção foi despida dos laivos adicionados pela produção de estúdio, construindo-se aos poucos a partir de um esqueleto rítmico produzido ao vivo. Para além dos instrumentos em palco, palmas, arfadas e cliques de língua compunham esses ritmos captados e repetidos ao longo a canção, controlados vertiginosamente pela artista.
O processo está à vista e, se antes Ana Lua dizia “não gosto muito que se perceba que são loops“, agora até chama a atenção para isso, honrando a sua técnica e impressionando o público com aquilo que consegue fazer sozinha, captado com uma camcorder e transmitido em directo como pano de fundo do concerto. “De Cabeça Colada ao Chão”, uma das canções novas, foi apresentada com uma introdução humorística aos loops feita pela artista. Sobrepondo camadas do seu curto discurso sobre loops para criar um efeito alucinante e até rítmico, daí saltou directamente para a canção que explorou um lado clubbing com o qual as suas canções de estrutura hiper-definida por vezes flertam.
Até o público fez parte do processo de gravação quando chegou a altura de “Vou Ficar Neste Quadrado”. Uma marcha, resultante do choque dos sapatos com o chão do recinto, foi a base para uma canção que evoca os ritmos típicos do cancioneiro português. No entanto, e apesar de as suas influências se notarem, o que é ainda mais notório é que o som de Ana Lua Caiano é inconfundivelmente seu. São poucos os artistas que chegam à esfera pública com um som já tão bem definido em tão pouco tempo. Como já escrevemos antes, é feito de “batidas que devem à tradição popular, mas de produção forte, melodias orelhudas rodeadas de sintetizadores industriais e letras poéticas carregadas de actualidade e mordacidade”.
As mensagens fortes que espelham a realidade da sociedade moderna andam de mãos dadas com os sons fortes. E até os títulos das suas canções são altamente característicos — “Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou”, “Ando em Círculos” (tocada aqui em versão acústica), “Sai da Frente, Vou Passar”. As suas frases evocam instantaneamente imagens kafkaescas e vagamente distópicas. “As buzinas eram mais altas que o meu juízo, as buzinas eram mais altas que as minhas miragens”, pede-nos que cantemos para acompanhar “Mais Alto Que o Meu Juízo”. “Casa Abandonada” expressa uma das faces da crise da habituação, um fantasma que assombra muitas das suas letras, com muito negrume — “Despedacem janelas, partam tijolos, partam mosaicos”, “Se aqui ninguém vive, nem o vazio viverá”.
Algo que nos surpreendeu foi encontrar pessoas estrangeiras na audiência, o que fala sobre a musicalidade instintiva das suas músicas. Mesmo quem não entenda ou fale português fluentemente, consegue encontrar aqui algo. “Se Dançar É Só Depois”, uma das canções mais celebradas do concerto, vai avançando até um ritmo mecânico e dançável que conseguiu arrancar os pés do chão de um público que talvez estivesse demasiado mesmerizado para se soltar totalmente. Mas o que o resto do concerto provou, é que a música de Ana Lua Caiano realmente pede movimento. Dois exemplos-chave disso são “Deixem o Morto Morrer”, um dos seus novos sucessos, ou “Mão na Mão”, um vira hiper-carregado pelo bombo (ver Ana Lua a carregá-lo ao seu lado lembrou-nos do seu bonito videoclipe).
Quem já tenha visto Ana Lua Caiano ao vivo não terá apanhado surpresas de maior, mas com certeza terá notado uma maior leveza na sua postura em palco. A timidez que a caracteriza faz-se sempre notar de alguma forma, mas a alegria que sentia ao ver a sala lotada foi certamente maior, pelos rasgados sorrisos que tecia ao público sempre que a aplaudia. Para o encore bastante pedido, a artista desempoeirou “Cheguei Tarde a Ontem” e atirou-se a uma versão a puxar à discoteca de “O Bicho Anda Por Aí”, a canção hipocondríaca e nervosa que nos impele a soltar as neuroses através da dança. Foi o final ideal para nos soltar de volta à cidade de Lisboa, que pulsava a uma quinta-feira com a energia que só o iminente Verão liberta pelas ruas.