O que a música pode fazer em tempos de coronavírus
Aquela guitarra acústica no canto do quarto já está comigo há mais de sete anos. A minha falta de disciplina fez com que nunca fosse um grande prodígio. Não consegui responder aos apelos do meu irmão, que me chamou de “Frusciante” durante alguns tempos, depois de, no início do 12.º ano, eu decidir rapar a cabeça e tentar aprender o Blood Sugar Sex Magik de uma ponta à outra – até desistir a meio, claro. Mas é uma amiga querida, e tem sido particularmente agradável poder contar com ela agora que não consigo fazer da cidade o meu quintal, como de costume.
Dizer que a música significa muito para mim seria, no mínimo, uma maneira simpática de não deixar o teatro ou o cinema com ciúmes. Estou sempre à procura de coisas novas para acrescentar à colecção – ou à playlist, melhor dizendo; não é como se não fosse da Geração Z, afinal de contas. Chega a ser quase irritante este amor pelos discos. Quem é que quer saber de música experimental feita num buraco aleatório da Hungria em 1968? Que eu saiba, isso nunca foi um bom tópico para quebrar o gelo numa conversa de autocarro. É uma paixão que muitas vezes me faz não querer falar de outra coisa. O que, de vez em quando, traz consigo uma sensação de inutilidade tão inesperada e estranha como deprimente. Uma espécie de “será que não consigo conversar inteligentemente sobre mais nada?” em loop enquanto afundo numa depressão.
Crises existenciais à parte, a verdade é que a música salva vidas, arruma as gavetas mentais que foram deixadas de pernas para o ar, é terapia. O Isaiah Rashad escreve aquilo que eu gostava de conseguir explicar quando me perguntam se está tudo bem, a Fiona Apple ensina-me a disfarçar a ansiedade enquanto tenta lidar com a dela, os Funkadelic fazem-me querer dançar apesar da evidente falta de jeito para a coisa. A música já ajudou a derrubar ditaduras, já falou de revoluções que nunca chegaram a passar na televisão e, sempre que a deixamos, fornece inspiração, se não apenas uma boa banda sonora, para os pequenos motins que tentamos organizar nos nossos minúsculos pedaços do mundo. Traz um pouco de direcção – e se, pelo contrário, só diz que estamos todos perdidos, ao menos sentimos o curioso conforto de não sermos os únicos à deriva.
Isto importa porque, neste momento, estamos todos atordoados. Com os ecrãs cheios de “últimas horas” e na era da estimulação constante, não sabemos o que fazer com tanta informação. O pior disto tudo? Temos de ficar em casa – pelo menos, assim recomenda a lei da prudência. As paredes ainda não falam, mas não podemos acolher visitas. A partir do sofá, assistimos, porque mais não conseguimos fazer, ao desenrolar de uma situação sobre a qual temos pouco controlo. Fechamos as portas para nos escondermos do vírus lá fora, e passamos a ter de lidar com os intranquilos bichinhos cá dentro. A voz interior chata e moralista que estamos habituados a ignorar deixa de competir com o que costuma ser um quotidiano cheio de pressa, beliscando-nos até ficar com a certeza que vai finalmente poder falar e inquietar sem ser interrompida.
A música ajuda a fazer a ponte. Sabe conversar com esses bichinhos melhor do que imaginamos – e, na maioria das vezes, muito melhor do que nós mesmos. Pego na “After the Flood”, dos Talk Talk, por exemplo, e espero que não demore a chegar o tempo em que vamos conseguir conversar sobre esta pandemia em pretéritos. Ouço, por outro lado, os sons do fogo-de-artifício na “Starálfur”, dos Sigur Rós, e imagino momentos que nos vão dar motivos para fazer a festa de novo. Essa música é toda ela palavras que nem sequer fazem sentido (são palavras inventadas, na verdade), mas que, por um minuto que seja, sem eu saber muito bem porquê, me fazem sonhar acordado. Não é (também) isso a arte?
O medo é completamente normal nesta altura. Recomenda-se mais do que o pânico e é manifestamente melhor do que a indiferença. Aos ouvidos dos bons medos, convém confidenciarmos palavras que os tranquilizem. Para que eles não façam disparar os alarmes da casa, como se houvesse um incêndio na cozinha, e para que nos deixem dormir descansados, até porque amanhã, tentamos convencer-nos, isto pode mudar de figura. E se só acreditarmos nisso porque, completamente desiludidos e desanimados, pensamos que não há forma possível de o cenário ficar ainda pior… Bom, na pior das hipóteses podemos dizer que já é um começo.
E um começo não pede grandes extravagâncias. Podemos, a partir da varanda, olhar para o nosso bairro com calma, reavaliar rotinas, pegar nos planos e nos pequenos projectos que andamos a empurrar para canto há mais tempo do que gostávamos de admitir. Podemos mergulhar nas ficções que comprámos para enfeitar as prateleiras ou, quem sabe, tocar aquela guitarra acústica no canto do quarto. Temos chamadas para matar as saudades ou cadernos para encher de parvoíces. E claro: temos música, música, música. Se não fizer mais nada, distraiu-nos um bocado e ajudou o nosso encarceramento cauteloso a passar mais rápido. Com sorte, deu algum ânimo para enfrentarmos esta que é a maior luta do nosso tempo com mais energia.
Há muita coisa que a música não pode fazer. Não consegue, por exemplo, criar uma vacina que nos espete sem medo e com força no braço, fazendo-nos saltar da cama e acordar do pesadelo. Mas há uma especiaria qualquer nos acordes e nas melodias que nos faz sonhar mais descansados. E, numa altura em que o isolamento nos fez compreender a falta que faz a presença do Outro, o momento parece ideal para também começarmos a dar o devido valor à importância de um bom sonho.