O que unia e o que separava os pintores Lucian Freud e Francis Bacon
Lucian Freud e Francis Bacon são dois dos mais conhecidos pintores da segunda metade do século XX. Similares em estilo, foram amigos, embora também rivais, descobrindo a pintura entre si, enquanto se chegavam a pintar. Foram, assim, importantes no desenvolvimento do figurativismo deste século repleto de novidades e de interrogações perante como representar aquilo que outros meios já conseguiam captar com exatidão. Desta forma, os dois ingleses, pela cidade de Londres e arredores, dialogaram e se repensaram como artistas e como veículos da inspiração humana para a arte.
Lucian Freud nasceu a 8 de dezembro de 1922, tendo falecido a 20 de julho de 2011. Já Francis Bacon nasceu 13 anos antes, a 28 de outubro de 1909, morrendo a 28 de abril de 1992. O primeiro, neto de Sigmund Freud, dedicou-se ao desenho e à pintura em Londres, depois de ter escapado da movimentação nazi em Viena, onde viveu, por via do seu pai, o arquiteto Ernest Freud, ser judeu. A sua mãe deu-lhe o nome de Lucian em homenagem ao escritor de Samóstata, que viveu durante o período do Império Romano e que se especializou na sátira e até em algumas ficções próximas das atuais científicas. Depois de travar conhecimento com o surrealismo, procurou usar algumas das suas técnicas, nomeadamente em retratos que mostravam figuras alienadas e meias distorcidas, embora pujantes e espessas (com o recurso aos impastos), assombradas por ambientes pesados e urbanos. A dimensão psicológica das suas pinturas envolvia, assim, um desconcerto pouco usual na pintura feita até então, escrutinando a relação subliminar entre o pintor e o retratado, que, geralmente, assumia posturas muito pouco convencionais, alimentando essa perturbação que muito do seu trabalho gerou e ainda gera. Não obstante, a sua vida privada foi, também ela, subliminar, sendo marcada pelo recato e pela discrição.
Por sua vez, Francis Bacon nasceu na Irlanda e, também ele, procurou ser desconcertante, embora com mais alusões à religião e à geometria das suas formas. Com a sua pintura, muito isolada na forma como foi aparecendo, procurava captar e desenhar a brutalidade dos factos, fragmentando as suas formas geométricas em busca desse retrato. Em muitos trabalhos, usou o formato dos dípticos e dos trípticos para alimentar a sequência lógica da sua pintura, que também ajudou a distinguir as temáticas que foi investigando ao longo dos anos. Depois de referências a divindades e a figuras papais até à década de 1950, trabalhou os animais e outras figuras a solo, como a sua própria ou alguns dos seus amigos, para além de autênticas crucificações, arrefecendo, somente, no final da sua vida, quando se preocupou em refinar a técnica. A sua carreira, que havia começado tarde, dados os seus hábitos boémios, tornou-se ainda mais sombria com a morte de gente íntima, como a do seu companheiro George Dyer, perscrutando a dicotomia entre a vida e a morte e da passagem do tempo.
Apesar de, em muito, similares, ambos eram críticos um do outro, havendo alguma tensão entre as suas expressões artísticas. Bacon via em Freud alguém que pintava de forma vaga e assustadora, roçando o ridículo. Por sua vez, Freud chegou a apoderar-se de pinturas de Bacon, só para que ninguém as pudesse ver. Dizia-se, até, que Freud sentia inveja pela qualidade do seu contemporâneo, apesar de, também ele, ser reputado pela capacidade brutal do realismo das suas figuras humanas. Encarava-o, todavia, como uma referência no mundo da arte, sendo Bacon mais velho, porque contrastava com o estatuto clássico e formal do artista: era excêntrico, bastante sociável e gostava de saborear os limites da vida e da criação artística. Apesar desta eventual tensão, havia, no entanto, uma amizade que os ligava. Era uma amizade daquelas de um contacto diário, quase permanente, que culminava numa convivência assídua na noite de Londres, no célebre subúrbio de Soho, com a companhia de bebida e de jogo. Mesmo na sua sintonia, a convivência artística era, de facto, à imagem do que era quando se sentia esse afastamento entre ambos, bastante crítica, procurando, ao mesmo tempo, incentivar um ao outro a melhorar a sua prática. A sua convivência foi partilhada com outras figuras de relevo da sociedade cultural desses tempos, como os filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
Na primeira vez em que Freud viu um retrato de Bacon, nutriu um fascínio pela sua espontaneidade e pela apreensão das suas figuras, muito à procura de encontrar e de registar o fundamento psicológico delas, ao invés da perfeição das suas formas. Bacon chegaria a pintar um tríptico de Freud, no ano de 1969, vendida por um preço que superou os 100 milhões de dólares (Freud também pintaria um retrato de Bacon, mas este seria roubado por volta de 1988). Aliás, seria, precisamente, esta mercantilização da arte que afastaria os dois artistas, tendo em conta a sobranceria que Bacon reconhecia a Freud, para além de desdenhar da própria riqueza que este foi obtendo e que, na verdade, já tinha. Apesar de tudo, o jogo havia feito com que Freud se tornasse mais importado com o dinheiro, atribuindo-lhe uma importância acrescida, ao contrário de Bacon, que, apesar de adorar ir ao casino, se importava mais com a arte por si mesma, desdenhando o valor do dinheiro ao ponto de o esbanjar como se de nada tratasse. Sendo ambos dados à discussão e à problematização a seu redor, foi com naturalidade que se afastaram, por tanto choque entre ambos. Assim, e apesar do respeito entre ambos manter-se, não havia papas na língua para classificarem a obra um do outro. Os adjetivos roçavam o insulto. No entanto, para o caso da pintura de Bacon, era um insulto que acabava por ser verdadeiro: por não ter formação superior, ao contrário de Freud, usou o caráter quase hilariante da sua pintura como uma vantagem, que foi usando para poder produzir obras correspondentes ao horror que tanto prezava. A violência visual era uma das suas forças e, assim, fazia questão de identificar e de transmitir essa mesma sensação.
Era uma sensação corroborada pelos rostos que pintava, parecendo fantasmagóricos pelas suas feições pouco claras e distintas. Bacon defendia, assim, a arte como um veículo de abertura e de expressão de sentimentos, onde a imaginação consegue dar vida ao evento que é pintado. Por seu modo, Freud procurava fintar as limitações dos artefactos e descrever, com precisão, a sensação de abandono. Um abandono que deixa que a pintura se exprima por si mesma, apesar de evocar a necessidade de evolução. Como foco, apesar do abandono, uma necessidade de exprimir e de pintar o prazer na sua forma mais bruta e desmedida, com firmeza e a tal pujança já referida. Também na metodologia era distinto. Freud pautava-se por um percurso paulatino, sem se basear em documentos fotográficos, ao contrário do que Bacon fazia, bem mais veloz, menos metódico e mais “fotográfico”. Em conjunto, desenhavam um percurso enérgico, embora fatalista, da arte figurativa, refrescando o seu panorama na representação abstrata das figuras, conseguindo distinguir-se das correntes vanguardistas suas antecessoras.
Lucian Freud e Francis Bacon foram, assim, para lá de amigos íntimos, duas das maiores figuras da pintura figurativa na segunda metade do século XX. Apesar das suas dissidências, seriam uma dupla reputada nos anos em que trabalharam, tanto como amigos, como durante o seu afastamento mútuo. Embora com metodologias e percursos distintos, foi, todavia, mais aquilo que os aproximou do que aquilo que os afastou, numa tentativa gutural de representar as figuras artísticas e de lhes dotar de uma personalidade ávida e brutal. Assim foi, por meio de toda a sua controvérsia, um percurso que, muitas vezes perpendicular, se deu melhor enquanto paralelo, na afirmação de dois vultos maiores de uma pintura enérgica e viva, embora, tantas vezes, sinistra e indiciadora de uma sensibilidade perturbadora.