O renascimento de Harlem: um despertar afro-americano

por Lucas Brandão,    29 Maio, 2020
O renascimento de Harlem: um despertar afro-americano
“A Great Day in Harlem” (1958) / Art Kane
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À letra, o Harlem Renaissance. Durante os loucos anos 1920, aqueles que precederam a crise económica de 1929, viveram-se tempos prósperos nos Estados Unidos, mas também de alguma emancipação. Foi isso que se sucedeu no subúrbio de Harlem, em Manhattan, Nova Iorque.

Alain Locke, escritor e filósofo, deu o mote para que se fundasse este “Novo Movimento dos Negros”, em especial na obra “The New Negro” (1925), obra de antologia que reunia escritos líricos e em prosa, mas também ensaios. Todos estes tinham sido escritos por autores afro-americanos. Foram cinco os ensaios escritos por Locke, sendo cinco contributos para fazer valer este movimento marcadamente urbano que se vinha revelando nas comunidades afro-americanas. Foi, assim, o núcleo de libertação para que outras expressões pudessem vingar, nomeadamente de autores advindos de ex-colónias das grandes potências mundiais, dando-lhes a voz que há tanto procuravam.

Os antecedentes

O rescaldo da Guerra Civil, no século XIX, trouxe outras preocupações para os Estados Unidos. O Sul do país estava dominado por relações de trabalho esclavagistas, sendo que eram os afro-americanos os principais visados. Eram eles os explorados e torturados na exploração de grandes latifúndios por parte dos landlords – à letra, os senhores da terra. No entanto, vários conseguiram obter a sua emancipação e deram a voz para que as comunidades exploradas começassem a pugnar pela sua participação cívica, com o objetivo de conseguir a sua autodeterminação cultural, social e económica, assim como garantir a igualdade de direitos e de deveres em relação aos indivíduos de etnia branca. Em 1875, já eram mais de dez os congressistas de etnia negra, numa fase em que a escravatura tinha sido abolida, no ano de 1863, assim como diferentes atos tinham defendendo a igualdade dos afro-americanos em relação aos demais.

Porém, a sua exploração continuava de outras formas, como o atormentar, por parte tanto de democratas como de republicanos, destas comunidades e dos lugares em que se reuniam para a sua discussão cívica. Para além disso, as relações de trabalho, embora não sustentadas na escravidão, eram precárias, com o trabalho a ser mal pago e as condições do mesmo a serem degradantes. Os próprios trabalhadores chegavam mesmo a adoecer e, por vezes, a serem vítimas mortais dessa precariedade. Era assim no Sul, enquanto o Norte, um pouco mais progressista, abria outras oportunidades a estas comunidades.

As memórias e esta pesada herança permaneceram nas gerações seguintes nas comunidades afro-americanas, sendo que, muitas delas, iam procurando novos caminhos que não o trabalho braçal ou industrial. Procuravam singrar nas humanidades, ainda muito exclusivas e fechadas ao diferente. De igual modo, no pós-I Guerra Mundial, para o qual muitos tinham sido convocados, sentiram o tratamento mais acarinhado dos europeus que dos seus próprios compatriotas. No entanto, as suas vivências precisavam de um canal pelo qual fossem exprimidas as agruras e as experiências de uma história que necessitava de ser contada. Alguns dos antepassados das gerações que chegaram aos anos 1920 tinham recebido o apoio dos seus patrões para desenvolver alguns estudos. Embora tímidas fossem essas ocasiões, abriram caminhos importantes para que, com a mudança do Sul para o Norte efetivada – leia-se o Oeste, como a Califórnia, e o Nordeste e Leste, como Chicago, Philadelphia ou Nova Iorque -, as comunidades pudessem cumprir as suas ambições de forma mais pura e verdadeira. Procuraram e foram encontrando, a espaços, melhores condições de vida, distantes do racismo dilacerante que o Sul ainda sentia. Das Caraíbas, também tinham vindo diferentes comunidades afro-americanas, especialmente do Haiti ou de outras ilhas de menor proporção.

Foi, precisamente, em Harlem que se começou a formar um grande contingente destes migrantes, muitos à procura de trabalho e de sustento, mas muitos também à procura de dar expressão e valor à sua arte, como a música, a literatura ou a pintura. Harlem era, antes, um subúrbio de classe média-alta com alguma exclusividade e, como tal, foi vendo, a seu redor, serem construídas infraestruturas de grande qualidade, tanto desportivas como culturais. Porém, com a grande imigração de europeus, que decorreu já nos finais do século XIX, quem lá vivia partiu mais para norte, para um lugar não tão exposto a tal êxodo. Era, assim, uma oportunidade para os afro-americanos poderem encontrar o seu lar e o seu trabalho, para poderem, enfim, viver em liberdade. O que não aconteceu de forma linear, visto que o racismo ainda era nota permanente, em especial em torno daqueles que tinham vindo da Europa. Foram tempos turbulentos – o Verão Vermelho de 1919 – em que os indivíduos de etnia branca atacavam as comunidades afro-americanas, numa tensão que se generalizou na economia do país, em especial no trabalho e na habitação.

A história do negro americano é a história desse conflito – esse desejo de atingir a adultidade autoconsciente, de fundir o seu ser duplo num eu melhor e mais verdadeiro.

W.E. Du Bois em “The Souls of Black Folk” (1903)

Os pensamentos, as criações e as artes

Mas Harlem renascia. E começou a renascer até antes dos anos 1920, já com as peças que o dramaturgo Ridgeley Torrence escrevia e que eram interpretadas com atores afro-americanos, procurando refutar os estereótipos que caricaturavam todos os indivíduos de etnia negra e que os limitavam à chacota geral. O teatro americano conhecia um novo fôlego, uma nova realidade, mais adequada e apropriada à exigência dos tempos. Na poesia, era o jamaicano Claude McKay que procurava acentuar o valor da herança cultural africana e da sua própria, a jamaicana, apelando à luta perante a discriminação racial, embora o exprimisse de forma subtil (o poema “If We Must Die”, de 1919, era o desafio que lançava perante as constantes provocações dos indivíduos de etnia branca. James Weldon Johnson era, também ele, um poeta que procurava ser inventivo e inovador na forma como se armava para a luta contra a discriminação racial. Aliás, foi ele que lançou a antologia “The Book of American Negro Poetry”, que conheceu duas edições (1922 e 1931, esta aumentada), sendo um promotor dos jovens valores da poesia no seio destas comunidades.

No entanto, os tons não eram todos iguais. Hubert Harrison radicalizava a luta de Harlem, sendo o líder do braço dos afro-americanos no Partido Socialista Americano, para além de fundar a Liga da Liberdade e de ser a primeira voz ativa na criação do movimento do “Novo Negro”. Recusava a iniquidade e a submissão silenciosa àquilo que se aceitava como lei, colocando a dignidade humana em primordial lugar. A consciência de classe era outra das grandes premissas de Harrison, que inspirou diferentes movimentos raciais de cariz social, como os que Marcus Garvey criou com a Associação Universal para o Progresso Negro. Foi, assim, essencial Harrison para esta “renaissance”, assim como o foi a Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), uma organização que dava a voz contra todo o tipo de discriminação, pugnando pela equidade social, económica e cultural.  Contudo, Harrison também destacava a importância das artes, embora não considerasse o fluxo de criações literárias e artísticas como um renascimento, achando que se tratava de um termo cunhado pelos indivíduos de etnia branca.

Ao olhar de outros autores, porém, era outra a sensação. O renascimento era um sentimento de aceitação em relação aos escritores afro-americanos, mas, de igual modo, uma expressão despojada de preconceitos e de medos daquilo que sentiam, daquilo que viviam, daquilo que escreviam. Alain Locke, que já foi mencionado, era outro dos que contribuía para que este reconhecimento fosse sentido. “The New Negro” (1925, editada por Locke) revelou importantes poetas e pensadores, como Langston Hughes, que se tornaria no principal rosto desta “renaissance”, e Zora Neale Hurston, que, juntos, viriam a fundar a revista “Niggerati”, resultante da expressão que o autor Wallace Thurman, também ele parte deste movimento, deu aos seus envolvidos. A poesia que era mostrada era distinta, especialmente pelos elos inquebrantáveis às origens afro-americanas e pela musicalidade única suscitada (a jazz poetry), em que os ritmos do jazz e dos blues acompanhavam a escrita lírica.

“Harlem

o que acontece a um sonho adiado?

Seca
como uma passa ao Sol?
Ou apodrece como uma ferida
E depois corre?
Fede como carne podre?
Ou encrosta e adocica
como um doce xarope?

Talvez apenas afunde
como uma carga pesada.

Ou será que explode?

Leighton Hughes em “The Collected Poems” (1994).

Algo que também pesou neste movimento foi o Cristianismo, que acompanhou de perto o desenvolvimento de muitos destes artistas e pensadores. As dificuldades que os padres afro-americanos sentiam perante as estruturas da Igreja Católica eram manifestas, tanto que eram notórias as dificuldades em fazer valer as suas ideias e as suas visões para o futuro da Igreja. No entanto, o Cristianismo não é sinónimo de Catolicismo e, como tal, as comunidades afro-americanas procuravam tornar a sua visão cristã mais aberta e inclusiva, fundindo-se com outras expressões religiosas, muitas delas advindas dos ancestrais africanos. Também o Islamismo e o Judaísmo foram praticados neste tempo, trazendo uma pluralidade que não era comum no seio de grande parte das outras comunidades americanas.

Os valores religiosos eram, porém, colocados em diálogo e em questão, e um dos nomes que trouxe a dimensão visual a essa discussão foi Aaron Douglas, que chegou a presidir a Guilda de Artistas de Harlem, uma organização fundada por artistas para prover interesse e oportunidades aos mais jovens na criação artística. Isto sem esquecer a tónica das questões que mais afligiam estas comunidades, como a pobreza e a discriminação racial, procurando ajudar a diminuir o impacto desses fenómenos. Douglas conseguiu o feito de desenhar e pintar as revisões e as considerações feitas ao dogma cristão, recorrendo a diferentes cenas bíblicas. Também Langston Hughes e o poeta Countee Cullen – defensor da ideia de negritude como um descobrir de valores e um tomar de consciência da raça e do modernismo negro – discutiram os valores morais cristãos (e a opressão e a injustiça perante eles) e as dificuldades vividas desde sempre pelos afro-americanos.

Harlem foi, mais do que inovador, emancipador na música. No entanto, também foi inovador na forma de tocar piano chamado o estilo Harlem Stride, que convidava a uma maior improvisação do intérprete, com maior variedade de tempos e e de batidas. Foi a música que ajudou a atenuar as diferenças dentro das próprias comunidades afro-americanas, nomeadamente quanto ao estrato social. O jazz também contribuiu para que os mais ricos destes núcleos se pudessem aproximar dos mais abastados, nomeadamente com o domínio do piano, conhecido como um instrumento simbolizador de riqueza. Assim, foram vários os compositores e músicos afro-americanos que se aproximaram do jazz e que, dele, fizeram a sua vida. Entre eles, Eubie Blake, James P. Johnson, Willie “The Lion” Smith, Fats Weller, a cantora Florence Mills e os notáveis Duke Ellington, pianista, e Louis Armstrong, trompetista, ajudaram a que o ragtime, composto por essa pauta mais oscilante e trémula, se tornasse mais harmonioso e consistente no jazz. A música foi, assim, um grande veículo que aproximou os indivíduos de etnia negra aos de etnia branca, especialmente os grandes autores e compositores, unidos pela causa una e diversa da cultura. Poesia de origem afro-americana, assim como várias linhas rítmicas e melódicas dessa sua herança musical, foram importadas para as tendências da criação musical e literária, em especial no jazz. Até na música erudita se assistiu a esta maior inclusão, em que o pioneiro foi Roland Hayes.

https://www.youtube.com/watch?v=FIRdvFfpDIA

No que toca à moda, as tendências destas comunidades eram bastante personalizadas. Para as senhoras, as roupas eram bem mais leves e frescas, embora com um traço claramente extravagante. Os adereços eram parte fundamental do vestuário, entre colares, cigarrilhas e penas, que ornavam os vestidos até à cintura e os calções curtos, coroados com pomposos chapéus, que intercalavam com boinas. Estavam, claramente, aptos à efervescência musical a que os loucos anos 1920 convidavam. Tanto que uma das referências neste aspeto se tornou a dançarina Josephine Baker, que dava cartas em Paris com a sua art deco aplicada à moda, e Ethel Moses, conhecida como a “Jane Harlow negra”, cunhada como sex symbol. Para os senhores, os fatos soltos, de blazer comprido e de lapela larga, conhecidos como os zoot, complementados com calças bem largas e soltas. Chapéus de abas largas, meias coloridas e luvas brancas complementavam-se a uma indumentária que, por vezes, também era substituída por casacos feitos de pele de leopardo, enunciando o poder do animal africano.

Os temas, as influências e as críticas

Importa refletir, de novo, naquilo que o renascimento de Harlem se propôs a fazer como um todo. O orgulho racial destacava este “New Negro”, que conseguia emancipar-se a partir da literatura, da música e das artes visuais, abrindo portas a que os estereótipos de fundamento racista fosse mitigados. A raça seria uma diferença positiva e não um obstáculo ao progresso da sociedade, sendo a integração uma premissa fundamental neste caminho trilhado. As heranças africanas eram preciosas, acreditando numa visão pan-africana que agregava todo esse lastro e esse património, dando ferramentas presentes e futuras para uma nova forma de criar. Não eram só as experiências da escravatura, mas também as tradições do folclore dos países caribenhos e africanos, que, perante presunções de superioridade moral, procuravam abrir as portas à modernidade, em que as comunidades de etnia negra vislumbravam a sua diferença positiva.

Para que isso se concretizasse, existia um grupo de patronos destes artistas, tanto de etnia negra como branca, que prestavam apoio e que proporcionavam oportunidades para que o projeto associado ao renascimento de Harlem se concretizasse de verdade. Um desses rostos foi o do escritor e fotógrafo Carl Van Vechten, defensor das liberdades sociais e privadas das comunidades de etnia negra, abrindo portas a artistas como o músico Paul Robeson, à cantora e atriz Ethel Waters e ao escritor Richard Wright. Também Charlotte Osgood Mason foi uma dos mecenas, oferecendo quase um milhão de dólares (ajustado à inflação atual) ao apoio a este movimento, inclusive a artistas que abordavam esse tema, como o pintor mexicano Miguel Covarrubias e o antropologista Arthur Fauset.

Havia quem procurasse explorar as “culturas primitivas” deste movimento, embora mais sólido se tornassem as colaborações que alguns artistas notáveis foram formando com outros das comunidades afro-americanas. O compositor George Gershwin deu origem a uma ópera exclusivamente interpretada por membros destas comunidades em “Porgy and Bess” (1935), assim como a ópera de Virgil Thomson, a quem Gertrude Stein concedeu o libreto da peça musical, “Four Saints in Three Acts” (1934). Em ambos os trabalhos, o denominador comum foi a maestra Eva Jessye, de etnia negra. O mundo da música ia, assim, abrindo portas a que o racismo deixasse de ser regra e passasse a ser cada vez mais exceção, compreendendo cada vez mais afro-americanos nas suas maiores produções. Já nas estantes, nesta procura por equidade entre todos e procurando fazer valer o valor da sua humanidade, os vários autores iam conseguindo ingressar nas livrarias, tendo conseguido, entre outros não mencionados, o modernista Jean Toomer, o professor poeta Arna Bontemps, a idealista Jessie Redmon Fauset e o afro-caribenho Eric D. Walrond. Ainda mais vanguardista foi Richard Bruce Nugent, que se lançou a escrever e a pintar sobre as questões prementes no renascimento de Harlem e os temas LGBT subjacentes nas dinâmicas deste espírito, procurando colaborar com autores, como Ralph Ellison, a aproximar estas duas dimensões de causas sociais.

Essencial é, também, perceber que este movimento em Harlem ajudou a que, no pós-Segunda Guerra Mundial, se fomentasse o movimento dos direitos civis, onde se envolveram os carismáticos Martin Luther King e Malcolm X. Isto porque, na base, está a construção de uma nova consciência racial, que necessitava de desconstruir a noção que o pensador W.E. Du Bois tinha apresentado como o “décimo talentoso”, em que só um em cada dez norte-americanos de etnia negra conseguiria prosperar social e economicamente. Du Bois, o primeiro doutorado afro-americano, havia sido um dos grandes pensadores sobre o pan-africanismo e a importância de uma reconstrução social e racial norte-americana, com base da dualidade com a qual deviam ver o mundo: a consciência de quem são por si e a consciência de como os outros viam o eu.

O legado do renascimento de Harlem permitiu abrir horizontes para o caminho a seguir na transformação da sociedade, não só norte-americana, mas, e em essência, a mundial. Isto porque as comunidades de etnia negra passaram a ser vistas com outros olhos, com um cariz bem mais humanizador do que até então, capazes de fazer arte com caraterísticas únicas e diversas. Capazes de inovar, de construir e de inventar, são artistas, mas, e mais fundamental do que isso, são seres humanos. Não devem nada nem ninguém lhes deve o seu lugar na sociedade, não sendo a raça razão para distinção aos olhos da justiça, da política, da economia e da cultura. Os afro-americanos construíram o seu presente e o seu futuro numa visão cada vez mais cosmopolita e universal, abertos às tendências de fora e ao saber dos quatro cantos do mundo. Finalmente com o inalienável direito à autodeterminação, a urbanidade negra cresceu de forma tão substancial que permitiu formar os pilares para um movimento concertado em prol dos direitos civis inequivocamente equitativos para todos os indivíduos de etnia negra.

Harlem foi uma plataforma em que várias experiências, vários legados e vários caminhos se cruzaram, formando uma mundividência distinta, que honra os compromissos com as raízes e com o seu folclore, tratando-se de uma fonte de inspiração artística e de afirmação das suas identidades. Esta partilha, esta integração de diferentes percursos ajudou a construir essa consciência de raça e a formar, da pluralidade e da diversidade de identidades, uma só, aquela que era necessária construir e preservar perante as adversidades impostas pela sociedade: a identidade racial. As pressões das alas mais conservadoras da sociedade, no entanto, procuravam condicionar uma certa ideia de “libertinagem” que pairava na sua repulsa pelo que era diferente e que colocava em causa os seus pergaminhos morais de uma sociedade harmonizada e plenamente burocratizada.

Essa ideia de libertinagem vinha de uma nightlife intensa nos bares, nas discotecas e nos cabarés da cidade, em que os próprios artistas queer começaram a percecionar a sua identidade e a exprimirem-se sem a sombra do preconceito. Muitas das referências dos blues, que vinham crescendo em notoriedade e em criação musical, como Gertrude “Ma” Rainey ou Bessie Smith, eram provocadoras e procuravam abrir os horizontes para os novos caminhos que a sociedade havia de fazer. Também Gladys Bentley, um outro cantor de blues, vestia-se de mulher, sendo uma referência nos drag balls que ocorriam na noite de Harlem. A excentricidade e a ousadia eram constantes nestas festas, deitando por terra os estereótipos e visando o desafio aos papéis que a sociedade impunha, que, na sua dimensão “neo-negro”, punha os papéis do género e da sexualidade em cheque. Vivia-se, assim, muito à frente do frenesim silenciosamente conservador dos anos 1920s, em que a liberdade sexual caminhava de mão dada com a liberdade racial pelo caminho da emancipação e da realização.

As críticas eram, assim, comuns, não só vindas de fora, mas também de dentro. Uns acusavam deste renascimento ser apenas uma imitação das tendências da moda – uma assimilação -, de forma a enquadrarem-se na sociedade. Por isso, os valores de Harlem não tinham conseguido superar a referência dos ideais tradicionalmente americanos. Por outro, era um renascimento seletivo, que não alcançava todos mas só uns quantos, um rol limitado de artistas que eram promovidos para publicação e para, de seguida, serem considerados para prémios. Du Bois também tinha sido crítico da importância que era dada aos temas da sexualidade, com Langston Hughes a responder com o apoio a uma expressão livre e descomprometida, que correspondesse à voz do espírito, independentemente dos olhares condenadores da sociedade. Os próprios músicos, por vezes, sujeitavam-se a atuar somente para públicos de etnia branca, acabando por ser absorvidos pelas tendências do espetáculo musical.

De igual modo, sentia-se a frustração de um caminho que parecia inconsequente por parte dos autores literários. Eram dificuldades difíceis de serem superadas e amparadas por um público que se interessasse pelas suas causas. Hughes falava até dos autores afro-americanos serem dispostos em lojas como se de obras estrangeiras se tratassem. Apesar de uma crença inabalável na reforma democrática, num país cada vez mais progressista e assente no exercício da arte e da literatura, tornou-se ainda mais complicado quando eclodiu a Grande Depressão económica de 1929, onde muitos dos rostos deste movimento ficaram desconectados daquilo que a sociedade exigia deles. Quem resistia, já havia conquistado os públicos ou as estantes. Todos eles brancos.

Não obstante qualquer frustração, o renascimento de Harlem foi um movimento marcante na sociedade norte-americana e um pouco por todo o mundo, em especial nas raízes deste assomo artístico composto por pensadores, poetas, músicos e pintores com muito por contar. Aquilo que perdura até à atualidade, apesar do desconhecimento presente de grande parte destes nomes, é o seu contributo por uma sociedade mais igualitária, diferenciando positivamente a raça através de uma consciência desenvolvida nesse sentido. Como meta, a liberdade descomprometida e desligada de preconceitos e estereótipos; como armas, a cultura e a arte. Sem Harlem, muito poderia ser diferente, se não houvesse confrontado uma sociedade que, em vez de se ver diferente e de diversa, só se queria ver de branco.

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