“O Retrato de Casamento”, de Maggie O’Farrell: a infância em morte rápida
Não é fácil sair de “Hamnet” (Relógio d`Água) e entrar em “O Retrato de Casamento” (Relógio d`Água), ambos de Maggie O’Farrell.
A história sobre o filho de William Shakespeare, ou melhor, a excelência narrativa dessa história põe o foco na escritora nascida na Irlanda do Norte. O romance anterior acreditou O’Farrell como demiurgo capaz de levantar da História não só uma época como também a empatia por personagens de há séculos. Tudo isso graças ao equilíbrio entre ambiente medieval e sentimentos universais e contemporâneos.
Saímos da Inglaterra vitoriana, em “Hamnet”, e entramos na Itália renascentista, em “O Retrato de Casamento”.
Em 1560, na cidade de Florença, a filha mais velha do grão-duque Cosimo de Medici morre na véspera do casamento com Alfonso, duque de Ferrara.
A conveniência em ligar as duas casas através do casamento é contrariada, mas não por muito tempo. De Ferrara vem a intenção do grão-duque de se casar, em substituição, com Lucrezia de Medici.
Ainda antes da primeira menstruação, vê-se prometida a um homem que mal viu e de quem se espera que a engravide.
Tal qual em “Hamnet”, sabemos o destino de Lucrezia logo na epígrafe do romance. Ela morre com 16 anos, ou seja, um ano após ter casado.
O desafio ganha maior dimensão. Como manter o interesse do leitor quando já se conhece o epílogo?
Maggie O’Farrell responde com mestria.
O raio desde o ponto de pista tem Lucrezia como o seu centro. É através dos olhos dela, é através da sua percepção que a visão do leitor se forma. O que, à partida, pode ser uma limitação torna-se um trunfo. O foco mais circunscrito permite manter o mistério sobre a causa da morte. Toda a transformação física e, principalmente, emocional é reflectida lenta e eficazmente na prosa. Casa frase está prenhe de incerteza infantil; o medo e o desconforto sentem-se em cada momento e a desconfiança de que Alfonso a quer matar mantém-se tensa até ao último acorde.
Lucrezia analisa e aprende. Lucrezia cresce. A vivência com o seu marido permite conhecê-lo. A sua insegurança não aplaca, antes pelo contrário. A ânsia em ter um filho vai revelando a personalidade do duque. Lucrezia sofre, e o leitor sofre com ela.
Maggie O´Farrell leva o seu tempo. Não se precipita. O desenvolvimento psicológico é coerente, bem urdido e enleante.
Eis um dos grandes méritos da escritora irlandesa em “O Retrato de Casamento”:
A excelência na criação de empatia entre leitor e personagem.
Consegue-o mantendo o equilíbrio entre descrições da realidade da corte, do vestuário, dos hábitos, sem qualquer presunção, com o desenvolvimento emocional das personagens.
Não é tarefa fácil, mas a escritora confirma o que já havia demonstrado em romances anteriores. O`Farrell sabe o que faz, coloca o leitor na época, não o enfastia com conhecimento ostensivo e pretensioso, cativa-o ao fazê-lo gostar ou odiar quem vai conhecendo pelo caminho.
Estamos na corte, entre tapeçarias e pinturas, palavras em surdina e arranjos nos bastidores. Caminhamos com Lucrezia.
Maggie O` Farrell procurou e encontrou o equilíbrio entre contexto histórico e psicologia. Mais uma vez.