“O Sargento Negro”, de John Ford, não é de 2020, mas é o filme do momento
Num dos melhores diálogos de “O Sargento Negro” (1960), ou em inglês “Sergeant Rutledge “, o sargento titular partilha: “Foi bom que o Sr. Lincoln tenha dito que éramos livres, mas não é bem assim. Talvez um dia, mas ainda não”. É triste constatar que, sessenta anos volvidos, esse mítico dia ainda não chegou.
Organizado pela Medeia Filmes, o ciclo de cinema “A Propósito do Racismo e da Escravatura” tem decorrido ao longo do mês de julho no cinema Nimas em Lisboa. O ciclo, que repudia o preconceito racista e incentiva a reflexão sobre temas como a segregação racial e o privilégio branco, terminará já em agosto. Um dos destaques da programação será exibido no próximo dia 3 de agosto: “O Sargento Negro” – uma tradução algo questionável (para não dizer racista) do original “Sergeant Rutledge”.
Realizado pelo lendário John Ford, o filme acompanha o julgamento de Braxton Rutledge, um sargento negro (magnificamente interpretado por Woody Strode) acusado de violação e assassinato. Os contornos do crime vão lentamente sendo esclarecidos através de uma série de flashbacks. Ford habilmente funde o western e o courtroom drama, se bem que a adrenalina das sequências no faroeste suplanta o drama na sala do tribunal.
O realizador português Pedro Costa afirmou que o seu “Juventude em Marcha” (2006) é na realidade um remake, um reimaginar de “O Sargento Negro”. Tal é evidente pela premissa e cinematografia que ambos os filmes partilham. Ford filma Strode em contrapicado (i.e. com a câmara em baixo e virada para cima), o que, aliado à interpretação elegante de Strode, enaltece Rutledge e confere-lhe uma postura grandiosa e heróica, algo raramente visto na representação de personagens negros. O próprio Woody Strode declarou que “Nunca antes se vira um negro descer uma montanha como John Wayne. Tive a maior cavalgada pelo rio Pecos que qualquer homem negro alguma vez tivera na tela. E fi-lo eu próprio. Carreguei toda a raça negra pelo rio”. A cena em que Strode, imponente e compenetrado, é iluminado pelo luar proporciona os planos mais marcantes e belos do filme, e nos quais facilmente vemos a fonte de inspiração de Costa.
É de facto surpreendente ver um filme de 1960 fazer face ao racismo e ao preconceito de uma forma tão progressiva. Mais impressionante é quando o colocamos lado a lado com os filmes do século XXI, que também tentam derrubar o estigma mas que inadvertidamente perpetuam estereótipos depreciativos: “The Blind Side” (2009), “The Help” (2011), “Green Book” (2018), só para citar alguns.
Neste momento da História em que os E.U.A. – e, na verdade, o mundo inteiro – se confronta com violência policial e racismo sistémico, “O Sargento Negro” é um feito: o raro filme cuja mensagem é tão importante agora como o era em 1960.