O ser humano e a (não)inevitabilidade da sua natureza

por Miguel Fernandes Duarte,    23 Fevereiro, 2020
O ser humano e a (não)inevitabilidade da sua natureza
Sturtevant,

O debate acerca da natureza humana marca e influencia praticamente todas as áreas de pensamento e acção do ser humano. A ideologia política, em particular, é indissociável da acepção que fazemos da nossa natureza enquanto espécie. Se, por exemplo, olharmos para homem e mulher como tendo funções e características distintas, facilmente organizamos os sexos consoante uma determinada hierarquia natural, tal como se, pela sua clara tendência para a individualidade e para o egoísmo, não virmos no ser humano qualquer capacidade para se organizar enquanto grupo, dificilmente acharemos que a sociedade deva ser organizada para um bem comum.

Para ilustrar pontos como este, são frequentemente usados exemplos do mundo animal. Ora, o problema deste seu uso prende-se precisamente com aquilo que Vinciane Despret levanta na sua crónica “Alimentar a nossa imaginação, com os animais”, na recente edição n.º 7 da revista Electra: “quando convocamos o animal como modelo, a analogia que procuramos criar repousa precisamente sobre um modelo já instituído.” Chamamos alguns animais a testemunhar os “traços cuidadosamente escolhidos que permitem produzir a analogia.” Usamo-los em função daquilo que desejamos, rejeitando quaisquer exemplos que contrariem a analogia pretendida. Isto porque, no mundo animal, a variabilidade entre espécies é praticamente infinita. Mesmo que determinada espécie recorra a determinada hierarquia ou possua determinada característica, isso nada permite concluir sobre o ser humano.

A utilização de analogias do reino animal cai precisamente no mesmo erro que tantas outras analogias falaciosas: apresenta uma tese recorrendo a factos isolados do que os rodeia. Reconstruímos a posteriori a história que queremos contar e tentamos arranjar características que a provem. O grande problema é que, recorrendo exactamente à mesma técnica, é possível arranjar exemplos totalmente contraditórios.

O psicólogo canadiano Jordan Peterson é um exemplo claro da utilização de exemplos do reino animal para argumentar a favor de uma teoria previamente concebida; neste caso, a inevitabilidade da organização hierárquica. Peterson usa o exemplo das lagostas, que funcionam em hierarquias muito relacionadas com comportamento agressivo e dominante, e têm um sistema nervoso muito ligado à serotonina (um neurotransmissor muito associado à felicidade), para argumentar que também nós, humanos, temos inevitavelmente de funcionar dentro de um sistema hierárquico onde quem ganha é o mais forte.

Ora, comparar o funcionamento do cérebro humano com o das lagostas é não só completamente simplista, como totalmente inexacto. Além disso, no mesmo mundo animal e com antepassados igualmente distantes de nós, é possível encontrar exemplos como o das lesmas-do-mar Aplysia, que dependem igualmente da serotonina, mas têm face a ela o comportamento inverso. Enquanto as lagostas são animais agressivos que não querem estar acompanhados de outras lagostas, com os machos a lutarem entre si pelas fêmeas, as lesmas-do-mar vão sempre agrupar-se e acasalar em grupos, sendo hermafroditas e alternando entre os papéis de “macho” e “fêmea”. E o que prova isto em relação ao ser humano? Ora, precisamente nada.

Além do mais, e como refere Vinciane Despret, tudo isto é ainda mais discutível quando “no seio da mesma espécie, e durante o mesmo período, podemos encontrar usos muito diferentes, simultânea ou sucessivamente, e, entre espécies diferentes, observamos usos variados dependendo da idade, do sexo, do habitat ou da densidade populacional.”

Ou seja, a variabilidade não existe só entre espécies, existe também dentro da mesma espécie. Como, aliás, é muito próprio do ser humano, onde, apesar de obviamente haver regras comuns que regem o nosso comportamento, existe entre as pessoas uma enorme variabilidade de personalidades, comportamentos, tradições e culturas.

Além do mais, muitas vezes os exemplos do reino animal parecem ser usados para diminuir a individualidade do ser humano e equipará-lo mais a uma massa passiva, recusando-lhe a oportunidade e o direito de se comportar de forma diferente.

É inegável que há factores que identificamos como inerentes ao ser humano, mas, como seres racionais que somos, temos a obrigação de os tentar combater se virmos neles um ponto negativo. Se o ser humano tende mais para a individualidade que para a comunhão e para a solidariedade, mais uma razão para a sociedade estar organizada de modo a combater estas tendências. Não só não é por todos sermos egoístas que não podemos trabalhar no sentido inverso, como é precisamente por sermos egoístas que temos de trabalhar para não o ser. Parte do trabalho de reconhecermos os nossos erros ou as nossas características menos boas é trabalharmos no sentido de as superar ou minorar. A sociedade deve estar montada de forma a ajudar nesse combate. A natureza humana não se encerra em si própria porque parte dela são, também, a adaptabilidade e a mudança, e a crença num eu e num nós melhores.

A revista Electra é um projeto da Fundação EDP lançado em março de 2018. É uma revista trimestral de pensamento e de crítica, conta exclusivamente com trabalhos originais de pensadores nacionais e estrangeiros. É editada em português e em inglês. A revista é vendida nas bancas, em livrarias, na loja do MAAT e online (aqui).

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