O “método Stanislavski” na representação

por Lucas Brandão,    1 Julho, 2020
O “método Stanislavski” na representação
Marlon Brando em “The Godfather” / Paramount Pictures
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Konstantin Stanislavski era russo e viveu entre 1863 e 1938. Trata-se de um dos principais nomes do teatro russo, destacando-se como ator, produtor e encenador de diferentes peças. No entanto, aquilo pelo que efetivamente se destacou, e em torno do qual o seu trabalho se desenvolveu, foi pela criação do conhecido “método/sistema Stanislavsvki”. Trata-se de todo um sistema a partir do qual o ator se prepara para o papel a desempenhar, exigindo todo um percurso e um processo disciplinado e imersivo, em que o profissional se envolve e se entrega totalmente à personagem a interpretar. Este sistema permanece, ainda hoje, como reconhecível no percurso de grandes intérpretes no cinema, tais como Marlon Brando, Robert De Niro, Dustin Hoffman, Harvey Keitel ou Daniel-Day Lewis.

A vida e obra de Stanislavski

Estas funções diretivas e formativas viriam depois de uma experiência acumulada como ator amador, que deixou de o ser após fundar a companhia do Teatro de Arte de Moscovo, ao lado do também encenador Vladimir Nemirovich-Danchenko. Aquilo que se tornaria crucial para que o seu sistema se tornasse tão badalado a Ocidente seriam os périplos que a companhia fez na Europa e nos Estados Unidos, dando a conhecer peças de importantes nomes russos, como Anton Tchekov, Maxim Gorky ou Mikhail Bulgakov (que seria um crítico de Stanislavski, pelo pouco crédito que atribuía à própria peça em si e pelo destaque que a fazia perder). Trabalhou com o designer britânico Edward Gordon Craig e o seu pupilo Vsevold Meyerhold até à sua morte, que ocorreria já após um ataque cardíaco que tinha sofrido em palco, nas celebrações dos trinta anos da sua companhia. O seu legado prevaleceu e prevalece, ainda hoje, como notável e assinalável.

No coração deste sistema, a arte da experienciação, movendo a consciência e a vontade do ator até a elementos psicológicos mais profundos e subconscientes, como a experiência emocional e o comportamento inconsciente. O ator procura, assim, motivos internos que justifiquem a intenção e a motivação da personagem. Depois desta envolvente psicológica, importa que seja concretizada, sendo incentivada a improvisação, procurando corresponder ao desenrolar do enredo. Estas são nuances muito superficiais em relação a um sistema que se tornou cada vez mais vulgo na formação em Teatro e em Cinema. Isto só pôde ser real pela experiência que Stanislavski acumulou, através da qual pôde pensar sistematicamente o interpretar do ator. Esse pensamento ajudou-o a chegar mais longe e a ultrapassar autênticas barreiras culturais, que seriam tão habituais como se tornaram dissipadas enquanto o sistema foi assentando no plano curricular dessas formações.

Konstantin Stanislavski / DR

Foram, assim, inúmeras as traduções às obras que o russo escreveu sobre este tema, em especial “A Minha Vida Na Arte” (1924), “Um Ator Prepara-se” e “O Trabalho de Um Ator Sobre Si Mesmo” (1938), “A Construção de Uma Personagem” (1950), “Criar Um Papel” (1961). As suas noções acabaram por se mesclar com outros métodos e outras escolas, embora perdendo o dínamo multifacetado e holístico que Stanislavski procurava incutir. No entanto, o seu sistema, conforme foi percebendo, acabava por tomar de assalto o ator em alguns casos, acabando por sofrer de doenças mentais. Procurou rebater essas situações com um encorajamento: após os ensaios, abandonar totalmente a personagem. O russo era exigente não só com os seus atores, mas também consigo mesmo e com as suas próprias interpretações. Foi essa a sua maior motivação na constituição deste novo processo de representação.

Para além disso, foi o início da sua carreira profissional, que veio após a criação da sua companhia de teatro. O instinto que movia esta criação era mesmo revolucionária, procurando desconstruir e reconstruir a forma de representar. Os atores não eram escravos do enredo e do guião e não eram artifícios mas sim autênticas personalidades, representativas das suas personagens. Até esse passo chegar, Stanislavski foi encenando algumas produções, procurando, de forma minuciosa e meticulosa, preparar a peça em todos os seus aspetos, nomeadamente no processo da interpretação propriamente dita. Vinha sentindo-se frustrado com o sabor agridoce das suas adaptações de Tchekov. Queria chegar mais longe.

A estruturação do sistema Stanislavski

Dessa forma, procurou dar ainda mais destaque ao processo da representação e ao da ação interna do ator. Mais do que o pendor produtivo, o destaque passou para a fase do ensaio e da própria pedagogia. Do ambiente da peça, procurou o protagonismo dos elementos que dessem o devido destaque às relações que as personagens estabeleciam entre si. Fez da sua companhia um autêntico laboratório, recheado de interpretações inovadoras e diferenciadas, procurando novas formas de fazer teatro. Foi nesta dinâmica laboratorial que se começou a desenhar o sistema sustentado num esquema sistematizado e coerente, assente em três pilares: uma abordagem centrada e unificada no encenador, disciplinada e constituída por um grupo restrito de profissionais (um ensemble cast); uma filosofia realista e centrada no ator; e uma encenação naturalista, em que o ambiente circundante influencia o ser o estar das personagens, capaz de valorizar o teatro independente. Este sistema, inicialmente uma experiência, passou a ser, por tenacidade de Stanislavski, o oficial de preparação e de ensaio de qualquer peça a apresentar pela companhia de teatro do russo.

Mais do que perceber e do que analisar o guião e a obra, as questões mais prementes tornaram-se, assim, os porquês e os para quês, questões basilares para que toda a preparação para a peça se possa consumar. Trata-se, assim, do experienciar, do vivenciar a personagem, de, mais do que ser uma mera representação, ser, efetivamente, uma segunda vida. Importava que o ator sentisse aquilo que a personagem sentia, desde que relevante para a interpretação e paralelo à experiência da própria personagem no trama. A “arte da experienciação” contrasta com aquela que era vigente então, a “arte da representação”, em que o ator passa a pensar, a desejar, a comportar-se e a viver, com uma lógica humana, mas de acordo com o ser e o estar da personagem. Por isso é que o ator assume quase uma segunda vida ou, por outras palavras, o ator incorpora a personagem.

Esta abordagem procura estimular a vontade de criar do novo e de ativar o subconsciente através de técnicas conscientes, buscando a recriação das causas psicológicas do comportamento da personagem. Dá-se espaço para que o subconsciente assuma o leme e para que, nos bastidores, se possa preparar uma interpretação empírica, sustentada na própria experiência do viver no lugar da personagem. Importa, assim, criar uma vida e uma existência no seu íntimo, dando-lhe voz e materialização. São as psicotécnicas aquelas que permitem que este processo se possa concretizar, e todas elas são orientadas pelo encenador, embora concretizadas pelo ator.

O papel do “e se” (o “mágico e se”) também é determinante neste processo. Trata-se do imaginar (a imaginação é, também, relevante neste percurso) alguém num conjunto de circunstâncias e de situações e de visualizar as possíveis consequências com determinada decisão ou com determinado comportamento. Estas situações podem ser apresentadas pelo encenador ou pelo dramaturgo, mas são circunstâncias que devem ser incorporadas pelo ator – as chamadas “circunstâncias propostas”. Ao incorporar estas, é permitido um juízo consciente por parte de quem representa sobre aquilo que, inconscientemente, a personagem faz ou assume fazer. Na preparação e nos ensaios, o ator vai suscitando diferentes estímulos sensoriais que ajudam a que respostas subconscientes possam ser dadas. São estímulos que ajudam a sustentar a tal experienciação e que permitem que a audiência ou outras presenças que possam interferir com a interpretação possam perturbá-la. Os ensaios ajudam, assim, a que se torne cada vez mais consistente e segura a experiência da personagem, ajudando a absorver o enredo e a vivenciar autenticamente as contingências da história. Por isso, Stanislavski usava a expressão “eu sou o ser”.

Importa, de igual modo, olhar para outras psicotécnicas que ajudavam a preparar o ator para esta experiência: o cultivo da solitude pública (ajudando a uma interpretação mais fluída e leve) e dos círculos de atenção, mesclando técnicas de meditação vindas do ioga com a preparação minuciosa em relação à personagem. A atenção ao detalhe tornava-se, também ela, crescente, sendo necessário a expressão através das particularidades que são induzidas pelas circunstâncias do trama. Tudo isto, porém, sem que o russo defendesse uma completa identificação do ator com o seu papel, dado que se poderia tornar nocivo para o primeiro. A força motriz, no entanto, é a ação, conduzida por uma sequência de tarefas suscitadas por problemas e/ou por circunstâncias do enredo. Assim, o estudo por parte do ator deve ser bem partido, tomando em consideração as diferentes porções da interpretação e as turbulências da ação, e a representação deve conseguir conjugar os sentimentos, a vontade e a inteligência, dando-lhe o poder e o entusiasmo criativos para absorver a personagem. Permite, desta forma, estimular os impulsos internos e externos, movidos pela profunda ação criativa, capaz de materializar o que se pretende para aquele momento do trama. A primeira peça que Stanislavski produziu, “Um Mês no Campo” – adaptação do autor Ivan Turgenev – permitiu praticar e pôr em prática estas nuances.

As várias tarefas tornam-se alinhadas num autêntico continuum, num percurso que se torna inquebrantável, permitindo que se constitua um grande objetivo, aquilo que move a personagem em todas as suas tarefas e em todas as suas ações. Esse grande objetivo só se pode ver perseguido quando se fundem a experienciação da personagem com a incorporação física e mental da mesma. Uma técnica que ajuda a que se incuta esse objetivo é, precisamente, dar espaço à improvisação nos conflitos gerados pelo desenrolar do enredo, dando espaço ao ator de se revelar no papel da personagem.

Noutro plano posterior, o “Método da Ação Física” é uma etapa que aprofunda o percurso do russo na constituição de um teatro cada vez mais virada e orbitada no ator. Foi um termo que, embora só cunhado após a morte do encenador, se tornou percetível ainda antes deste falecer, em diversas adaptações que foi fazendo. Procurou minimizar a análise passiva e torná-la ativa e resultante da própria experiência da personagem. A ação é o que permite uma análise mais capaz, permitindo perceber a forma como o ator consegue gerir e dominar o rumo dos acontecimentos no papel que assume. Mais do perceber e do que interiorizar, importa sentir, sendo o único caminho que permite que se cumpra eficazmente o seu fluxo criativo. Este percurso tornou-se cada vez mais louvado e ensinado em diferentes lugares e em diversas instituições, acabando por ser assinaladas tanto no seu país, já sob os desígnios soviéticos, como nos países tipicamente ocidentais.

O percurso do sistema

O primeiro estúdio em que o sistema pôde ser devidamente ensinado foi adjacente à companhia de teatro de Stanislavski, chamando-se “Primeiro Estúdio”, e sendo fundado em 1912. Criou-se esse laboratório para a investigação e desenvolvimento efetivo do sistema, em que muito se fez para explorar dimensões pedagógicas e técnicas para uma representação cada vez mais capaz e real. Nomes por detrás desta fase da formação dramática foram Yevgeny Vakhtangov, Michael Tchekov (sobrinho do dramaturgo Anton), o polaco Richard Boleslavsky e Maria Ouspenskaya. Stanislavski contou, de igual modo, com a assistência do seu braço-direito, o artista Leopold Sulerzhitsky, que coordenou as operações do espaço. O ambiente de trabalho era rígido e intenso, embora houvesse muita liberdade para uma descoberta interior e exterior bastante enriquecedora. O percurso da formação não era tinha muito que saber, embora tudo se tornasse fundamental e de vital aprendizagem: a descontração, a concentração da atenção, a imaginação, a comunicação e a memória emocional. O estúdio torna-se-ia independente da companhia de teatro em 1923, passando a chamar-se Segundo Teatro de Arte de Moscovo, algo que não agradou ao próprio Stanislavski.

Pouco tempo antes, o russo seria abordado pelo cantor lírico Feodor Chaliapin para importar o seu sistema para a música, em especial para a ópera. Seria uma oportunidade de mostrar que este sistema era transversal entre expressões artísticas. Assim, Stanislavski aceitou o repto e decidiu dirigir e ensinar neste novo estúdio – o Estúdio de Ópera. Foi criado em 1918 e ficou sob a tutela do célebre Teatro Bolshoi, aceitando alunos deste e do Conservatório de Moscovo. O encenador trouxe, para além de alguns familiares seus, dançarinos para dar aulas de movimento expressivo e o célebre pedagogo musical Serge Wolkonsky para dar aulas de dicção. Procurava juntar os esforços do cantor Chaliapin com o legado da representação de Mikhail Shchepkin, a grande referência de Stanislavski no teatro e no seu próprio sistema, e dar asas ao seu papel na pedagogia artística.

Foi assim que formou um outro estúdio, agora o Ópera-Dramático na sua própria residência, entre 1935 e 1938. Isto porque vinha sentindo dificuldades em concluir o seu manual para atores, que acabaria escrito e publicado postumamente, conforme referido anteriormente. Assim, assumiu a vontade de formar um novo estúdio no qual pudesse formar uma companhia inteira de profissionais e deu aulas a diferentes professores sobre o seu sistema e os processos constituintes num currículo estruturado por quatro anos de estudo orientados para a técnica e para a aplicação do sistema. As peças escolhidas para esta aplicação seriam “Hamlet” e “Romeu e Julieta”, clássicos da dramaturgia de William Shakespeare. A primazia dada aos clássicos era justificada pelo génio dos seus dramaturgos mostrar a lógica e a progressão dramática ideais. As aulas práticas foram, assim, focadas em sequências de ações físicas, que permitiam desenhar as suas linhas de ação e ensaiar cenas de raiz, capazes de serem inovadoras e renovadoras do decurso do enredo.

Já após a morte de Stanislavski, e como já referenciado, o seu sistema perdurou em alguns dos nomes que tinham lecionado nos seus estúdios, que internacionalizaram-no dando aulas, em especial, nos Estados Unidos. Não só professores de nacionalidade russa eram aqueles que frutificavam o legado do encenador, mas também nomes como a célebre formadora Stella Adler, que fez parte do Group Theatre (fundado em Nova Iorque na década de 1930 e determinante na massificação do sistema pelos Estados Unidos), assim como Lee Strasberg, que influenciou as carreiras de Al Pacino, Marlon Brando, Marilyn Monroe, James Dean, assim como do dramaturgo Tennessee Williams e do cineasta Elia Kazan. Bebiam também do laboratório que Boleslavsky e Ouspenskaya tinham criado em Nova Iorque, no ano de 1923, com o American Laboratory Theatre, sendo um modelo do Primeiro Estúdio de Stanislavski.

O mencionado Group Theatre, originalmente composto por Strasberg, Harold Clurman e Cheryl Crawford, originaram aquilo que ficaria conhecido como o method acting, em muito teorizadas nas obras postumamente lançadas da autoria de Stanislavski. É o mesmo método que se vai associando a atores que assumem a sua personagem com tamanha vividez e sinceridade, havendo uma dedicação quase inteira à que vão desempenhar. Nesta formação, Strasberg era o especialista da psicologia, enquanto Adler era a da sociologia e Sanford Meisner a da vertente comportamental e do improviso. Aliás, Meisner até teve uma técnica com o seu nome, dado o ênfase que dava à comunicação adaptativa, assente nos instintos provocados pelo ambiente circundante. Na sua tutela, estiveram os atores Robert Duvall, Diane Keaton e Tom Cruise.

Aprendam a amar a arte em vocês mesmos, e não vocês mesmos na arte.

“O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo” (1938)

Esta linha de formação foi a que mais perpetuou Stanislavski na história do teatro e da sua pedagogia, embora com uma distinção muito assinalável: o method acting assumia como preponderante a técnica da memória emocional, colocando-a até acima da importância da ação dramática. Aliás, Stella Adler havia trazido essa mesma impressão do tempo que esteve com Stanislavski, que procurava encontrar resposta através da ação física. Houve, assim, algumas adaptações ao contexto norte-americano, o que acabaram por alterar parte daquele que foi o sistema preconizado pelo russo, dando sempre o incentivo à ação, por mais que o sentimento pesasse. Em Inglaterra, de fortes tradições dramáticas, a influência deixada foi limitada, embora pesem os contributos de Joan Littlewood e de Ewan McColl no seu Theatre Workshop e a formação dada no Drama Centre London desde 1963.

Konstantin Stanislavski foi, desta feita, um dos principais nomes na formação da representação, tanto no teatro, como na própria ópera e no cinema, onde muita da sua influência se faria sentir. Embora pese diferentes interpretações e visões através das quais o seu sistema foi (re)pensador, é indiscutível o papel marcante do russo e da sua proposta de formação e de atuação dos atores, que lhes permitiu deixarem de ser subservientes do script, passando a assumir o protagonismo pelas suas representações encorpadas e vividas. O teatro conheceu, assim, um novo fôlego e ganhou uma revalorização dos seus intervenientes, o que ajudou a abrir portas bem abertas para que pudesse ganhar vida e vidas.

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