Olhão é “O Centro do Mundo” de Ana Cristina Leonardo

por Miguel Fernandes Duarte,    20 Julho, 2018
Olhão é “O Centro do Mundo” de Ana Cristina Leonardo

Há sempre, em toda e qualquer terra, uma história que se torna mito local, passada de geração em geração, e acerca da qual se contam factos e situações que, vulgares para quem as ouve de fora, são os únicos pontos de contacto com ela que mantém quem as conta. Em Olhão, esse mito tem a figura do russo Boris Skossyreff e é este trapaceiro russo, que, fugindo da revolução bolchevique, fingiu ser um aristocrata que não era, quem alimenta a narrativa de O Centro do Mundo, agora publicado pela Quetzal, o primeiro romance de Ana Cristina Leonardo, colaboradora do Expresso, onde assina uma crónica e crítica literária, além de ser também tradutora e revisora.

Ora, e que contacto tem este russo, que se autoproclamou Rei de Andorra durante uma semana, com a terra Algarvia de Olhão? Não muito mais que o facto de, em 1936, após ter fugido de diversos países e ter deixado para trás dívidas, a espionagem, uma mulher legítima, uma amante e o Trono de Andorra, ter estado durante uns tempos em Olhão à procura de um barco que o transportasse até Marrocos.

Essa curta passagem, sem nada que se destaque com grande relevo, é precisamente um dos problemas da obra de Ana Cristina Leonardo, porque a verdade é que, de Boris Skossyreff em Olhão, não há muito mais que a imagem de “um russo branco pelo meio do bedum a peixe e das pocilgas que eram as ruas na época.” Mas a autora é também explícita quanto a isso desde o início: sendo Boris Skossyreff uma personagem real, este livro não é um romance histórico, razão pela qual, mais do que da contextualização da história de Boris e da Europa dessa época ao longo do livro, o livro vive precisamente da sobreposição e interligação entre esses pedaços e a história da cidade de Olhão e dos seus habitantes.

Ana Cristina Leonardo / Fotografia de Miguel Manso

A história de Boris, peculiar e pitoresca, no mínimo, é, então, pouco mais que uma desculpa para escrever essa história da cidade de Olhão, cidade que viu Ana Cristina Leonardo nascer, desde as grandes partidas de futebol do Sporting Clube Olhanense às fábricas de conservas, aos marítimos que formam a grande maioria da população deste lugar de Olhão. E se estes pedaços relativos a Olhão são, efectivamente, capazes de oferecer alguns bons momentos, a narrativa acaba por se perder completamente quando começa a focar-se demais nas peripécias de Boris e a saltitar de cena em cena, de encontros com o explorador Percy Fawcett aos esquemas que arranja para se casar, até mesmo às suas histórias quando acaba num gulag russo, toda a vida do aventureiro russo vista através de um caleidoscópio que junta os pedaços da sua história sem quaisquer retalhos que os unam à excepção de Olhão, cidade onde é acolhido pelo enciclopédico médico Francisco Fernandes Lopes.

E se essa ausência de estrutura poderia ser algo que jogasse a favor do romance, não o é quando o que fica é um atabalhoado de histórias e uma manifesta diferença de interesse entre essas diferentes histórias. Ana Cristina Leonardo escreve bem Olhão e a sua história, faz um manifesto bom trabalho a pôr na página tudo aquilo que caracteriza aquele lugar e a sua gente, mas, ao tornar a história de Boris Skossyreff mais que um pequeno segmento da história de Olhão, transforma uma potencial ilustração da vida daquela terra numa desajustada cacofonia.

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