“Paraíso”, de Sérgio Tréfaut: é belo e retrata uma realidade grave demais para ser ignorada
Sérgio Tréfaut foi ao Brasil (re)conhecer uma cultura que lhe escapava na Europa; precisava conhecer o país que não pisava desde a infância, há cerca de quarenta anos. É isso que partilha com a plateia, que assistiu a uma projecção do seu novo filme Paraíso nos Cinemas Nimas em Lisboa: a experiência que teve nas filmagens, alguns contratempos e impressões. Responde, com entusiasmo, às perguntas — que foram tantas —, sobre a motivação do filme e os detalhes das filmagens do mesmo. As imagens deste documentário foram recolhidas no final de 2019; e é claro que, entretanto… já lá vamos.
Antes, sobre o filme: Paraíso é um documentário que parece rimar com Alentejo, Alentejo (2014) na premissa de retratar uma comunidade em torno da música. Desta vez, incide nalguns grupos de músicos amadores, todos eles para cima de septagenários, homens e mulheres, que se juntam regularmente, a uma dada hora do dia, para tocar e cantar. O repertório é popular, e tudo acontece de forma orgânica, na hora: o cantor dá o tom, os músicos afinam e dão o que podem. O resultado, esse, é mágico.
Uma das primeiras impressões que o filme nos deixa é fruto do cuidado e delicadeza com que tudo é filmado. Desde a colocação das cadeiras para o grupo aos últimos acordes de despedida, assistimos à integridade do processo de transformação daquela comunidade amadora, e somos voyeurs da cumplicidade entre todos. A distância entre ser artista ou espectador quebra-se no momento de sair da cadeira para se juntar aos demais músicos; e há quem se mostre feliz dançando apenas. É uma festa sem licença, para celebrar as canções de outrora, e se há nostalgia ou saudade do passado é certo que vem temperada de sorrisos e alegria de viver.
Ao longo de hora e meia, há uma série destes momentos belos — numa das sequências, a senhora Ilka, com cem anos, prepara-se para dar voz a uma canção que não recorda totalmente; e então a câmera de Tréfaut capta um plano lindíssimo, com Ilka a cantar, enquanto uma jovem lhe segreda a letra ao ouvido. Mas existe também a preocupação (social antes de ser política) de seguir os músicos e mostrá-los em casa, na intimidade, com alguns sozinhos e outros acompanhados, e é um gesto que tanto os humaniza nessa solidão, como releva a importância comunitária dos encontros musicais.
O que quer que Tréfaut tenha procurado encontrar no Brasil não será porventura tão precioso como isto. É património e é humanista; é esperançoso e positivo. No entanto, percebe-se na conversa com o realizador uma mágoa e uma raiva com o estado actual do Brasil que passará despercebido no quotidiano dos incautos. “Não há crítica gratuita” se visado estiver o governo de Bolsonaro, afirmará Tréfaut nessa sessão. Paraíso é lindíssimo, e não será definido pela época em que foi filmado; mas quando chega o seu final, lê-se a nota sobre o impacto da Covid-19 no Brasil. E também sobre o falecimento de algumas das pessoas que integravam as serestas. E aí se percebe que o filme poderá cumprir um papel político, quanto mais não seja pelo retrato involuntário de uma geração desprezada (para não dizer pior) pelos órgãos de soberania da sua nação. A realidade é grave demais para que a ignoremos, e Sérgio Tréfaut continuará uma força desta luta. Mas Paraíso, esse, é gentil, inspirador, verdadeiramente belo.