Paredes de Coura 2018 (dia 3): uma montra de diversidade e boa música
À medida que o festival avança, vai-se sentindo o acumular de emoções dos últimos dois dias – mas esse cansaço só potencia a sensibilidade aos estímulos que a música nos propõe. O conjunto de sonoridades desta terceira noite foi talvez o mais diverso do festival até agora: a música do mundo dos Imarhan, o grime de Skepta, o indie rock de Frankie Cosmos, o punk rock dos …And You Will Know Us by the Trail of Dead, o shoegaze dos Slowdive. Aquilo que poderia ser uma salganhada de géneros apresenta-se em Paredes como uma mostra de diversidade coesa e estimulante. É bom ouvir tanta boa música diferente.
A abertura dos concertos ficou a cabo dos vimaranenses Smartini, que actuaram no palco Vodafone.FM para alguns festivaleiros que, a medo, não se aproximavam das grades, deixando um grande espaço entre a banda e público. Não terá sido devido à música dos Smartini, mas esta realmente é imponente, com a sua sonoridade meio grunge completa com muito ruído, usando e abusando do reverb para criar paredes de som. Ainda assim, os ritmos constantes e seguros enterrados por debaixo desse ruído incitam a bater o pé e a abanar a cabeça. Foi um início de dia abrasivo, com noise rock de boa qualidade, em que o feedback de que Legendary Tigerman nos falava ontem era mais do que bem-vindo. Abandonamos o concerto ao som de “Liquid Peace” e vamos para paragens mais tranquilas.
Cada edição do Paredes de Coura deve ter sempre pelo menos uma banda representante da world music, que acaba por agradar a muitos. Depois do post-rock dos sul-coreanos Jambinai no ano passado, desta vez foi o calor argelino que veio para Portugal sob a forma do rock berbere dos Imarhan. Lembramo-nos dos conterrâneos Tamikrest ou os malianos Tinariwen, até porque estes também actuam ostentando vestes típicas da sua região. Os ritmos circulares e atípicos reminiscentes do afrobeat, assim como as guitarras desérticas, não fogem muito aos pares que mencionámos acima, mas os Imarhan adicionam profundidade com um instrumento de percussão idiossincrático, cujo som parece vir do trip-hop, criando a espinha dorsal rítmica da sua música. Junte-se a isso o baixo penetrante e temos canções prontas a ser dançadas entusiasticamente pelo público do festival. Mais uma boa surpresa num género que tem muitas cartas para dar.
Entretanto, começou no outro palco o concerto de Kevin Morby, marcando mais um regresso a Paredes de Coura. No entanto, de fazer o primeiro concerto do palco principal em 2016, passou para o segundo este ano; e, avaliando pela qualidade deste concerto, acreditamos que continue a subir a escada hierárquica festivaleira. O início foi dedicado ao mais recente City Music, com o artista a fazer as suas odes à vida citadina com crescendos rítmicos e som expansivo, bem patentes na canção-título desse álbum. A curta “1234” tem um tom mais rockabilly e prova que Kevin consegue equilibrar muito bem slow-burners com canções mais agitadas. “Aboard My Train”, belíssima canção também pertencente ao último álbum, lembra-nos de Velvet Underground.
Há uma sensibilidade composicional na sua música que cativa o público, para além da sua postura estóica, com movimentos repetitivos e decididos, que ajudam na sua precisão de guitarrista. “I love Portugal”, afirma, sentado na grade junto ao público, de mão dadas com um fã, e é impossível não acreditar. Tão rápida e abruptamente como veio ter connosco, volta para o palco e termina o concerto com canções de Singing Saw, com um magnetismo difícil de ignorar. “I Have Been to the Mountain” é apresentada com direito a trompete, que lhe dá um toque de classe, e o concerto acaba em altas com a enérgica “Dorothy”. Um verdadeiro mimo.
Terá sido o concerto mais quirky desta edição do Paredes: Frankie Cosmos no palco Vodafone.FM. O indie rock espontâneo da banda americana confunde-nos com a sua estrutura imprevisível, que ora abranda ora acelera. E os temas, curtos, que raramente ultrapassam os dois minutos de duração, soam a frescos – sentimos que estamos a assistir à crueza das composições, às ideias conforme surgiram. O work in progress está à vista de todos. Greta Kline, a frontwoman do projecto, fez-se acompanhar por uma banda também ela peculiar, que incluía um baixista, que podia perfeitamente ser menor de idade, e um baterista que sabia falar português e por quem tivemos de esperar quase dez minutos para subir ao palco para a última música.
Para fazer tempo, Greta interpretou só com a teclista três temas mais calmos. “Este é o único festival do mundo em que conseguimos tocar três solos seguidos com o público a ouvir em silêncio, atentamente”, agradeceu. Duvidamos que seja o único, mas por vezes caímos no erro de darmos por garantido o ambiente e a devoção musical que se vive em Coura. Efectivamente, uma grande parte do público está ali para escutar – tanto as bandas que adora, como aquelas que até àquele momento ainda não conhecia. É bom sentir que também os músicos dão por isso, por esta diferença, este factor humano. E quanto ao silêncio do público a que Greta se referia, esse existia só mesmo durante a interpretação; assim que o último acorde soava, a ovação era enorme. Foi muito bom sentirmos o calor com que Frankie Cosmos foi recebida no Taboão.
Pelos vistos, os DIIV estavam tão surpreendidos como nós por ter direito ao terceiro concerto do dia no palco principal e viram-se gregos para encher a hora de concerto que tinham para nos dar, apesar de contarem com dois álbuns e 30 canções sob a sua alçada. “It’s been a while since we’ve felt this popular”, dizem ao olhar para aquela que dizem ser a maior multidão para a qual já tocaram. A sua postura espirituosa não se coaduna com a sua música post-punk, com guitarras evocativas dos anos 90 que devem características ao dream pop, fazendo uma ligação aos Slowdive, que se apresentariam nesse palco a seguir.
Certo é que a música destes norte-americanos é fácil de gostar e, mesmo sem grande entusiasmo, o público manteve-se atento ao som de canções como “Under the Sun” ou “Doused” – esta última apresentada como “Vodafone”, numa clara referência a uma outra empresa de telecomunicações portuguesa que utilizou a canção como tema de um dos seus anúncios. Com o agradável som a encher o recinto, um filme pejado de referências a ser projectado por detrás da banda e esta interacção cómica, pode-se dizer que o espectáculo foi bem conseguido; talvez apenas mal colocado em termos de horário. “Make DIIV cool again” foi o mote do final do concerto; consideramos que estão no bom caminho, talvez só se devessem importar um pouco mais.
Depois, para algo diferente de tudo o que os antecedeu neste dia, o palco Vodafone.FM recebeu mais um regresso, o dos …And You Will Know Us by the Trail of Dead, a banda texana veio apresentar o seu post-hardcore e potenciar mais uns quantos moshes, claramente uma ocorrência comum neste festival. Foi um concerto enérgico, com canções selvagens e muita gritaria, mas também satisfação. “This is the best festival in the world”, diz-nos o baixista Autry Fulbright, urgindo a que nos apercebamos da sorte que temos por ser nosso. Os dois mentores do projecto vão-se revezando na bateria, guitarra e voz, numa dinâmica interessante e invulgar. Mais uma canção imparável, que Jason Reece apelida de “punk funk”, e a ginga caótica é inegável.
Estamos em crer que à beleza não há fuga possível. Nem todo o público presente no festival conheceria a música dos Slowdive, mas custa-nos acreditar que algum ouvido minimamente atento não tenha sido sensível, por um momento que fosse, aos acordes da banda. São raros os grupos que, mais de vinte anos depois do seu desmembramento, regressam com tanto ímpeto e eficácia. É certo que os Slowdive têm do seu lado o dream pop e o shoegaze que ajudaram a definir (e mesmo a inventar) géneros que envelheceram bem com o tempo, e que continuam propor muitas coisas boas – mesmo à geração que na altura ainda não tinha saltado do berço. Mas quantos o fazem tão bem como o Slowdive?
Os temas do novo álbum, principalmente “Sugar for the Pill”, foram acolhidos com calor por parte da audiência – assim como “Slomo”, introdução épica e prolongada que convoca magia. “Star Roving” foi talvez dos temas cuja definição de som não nos pareceu tão apurada. Mas foi uma excepção; é que o som límpido e cristalino da produção do concerto era, por si só, motivo de embasbacamento. As vozes de Neil Halstead e de Rachel Goswell – perfeitas? – soando próximas, íntimas. As guitarras, importantíssimas, distorcendo a realidade. Vão-nos perdoar as hipérboles – o concerto dos Slowdive, debaixo das estrelas, ultrapassou as nossas expectativas (já de si elevadas). Os temas de “Souvlaki”, o mítico álbum essencial da banda, têm tanto para dizer. E, em nota de rodapé, o cover de Syd Barrett (o lendário fundador dos Pink Floyd que se viu obrigado a afastar-se prematuramente da ribalta por motivos de saúde) alcançou o fundo do poço da beleza. No final não sabíamos o que fazer, para onde nos voltarmos; o desnorte era real.
Mas a verdade é que a festa ia continuar, com o único espectáculo de hip hop desta edição do Paredes de Coura. Foi Skepta quem veio ocupar o palco, acompanhado de um DJ. O rapper britânico, da cena grime, trouxe os baixos ribombantes e a energia extravagante que pôs toda a plateia da secção frontal a saltar e a mexer. Talvez tenha sido, para quem ocupava essa secção do recinto, o momento mais fisicamente intenso do festival. A comprová-lo, assim que acabou o concerto, aqueles que apareciam de tronco nu, a pingar, sem fôlego. É compreensível que não fosse motivo para menos: o rap eficaz de Skepta usa os trunfos que o hip hop mais recente tem cultivado ao longo desta década. E os ouvidos de uma geração para quem o hip hop é o novo pop não ficam indiferentes. Saltou-se, gritou-se, dançou-se, fez-se dos maiores moshes do festival. O concerto ainda parou, por motivos de segurança, porque, no meio da histeria, colectiva alguns fãs começaram a atirar objectos para o palco. Mas felizmente tudo retomou à normalidade, e Skepta recebeu a coroa de uma grande actuação e recepção em Coura.
As Pussy Riot eram um dos fenómenos desta edição do Paredes. O colectivo russo, conhecido mais pelo seu activismo político do que propriamente pela música que criam, apresentaram-se com a sua mensagem anti-ideológica (e muito ideológica, à sua maneira) diante de uma plateia imensa. Dedicaram algumas das suas músicas a pessoas presas por motivos políticos na Rússia – um ex-presidente ucraniano, um grupo de anónimas acusadas de fomentarem organizações extremistas pela internet… num discurso impiedoso para com o populismo e a polícia, serviram-se de música estrambólica para veículo da sua palavra: ora em exercícios desconstruídos e violentos de electrónica, ora por meio de um pop estridente ultra-açucarado (não o adjectivamos com desprimor, há qualquer coisa de estimulante nessa sonoridade que tem vindo a afirmar uma estranha frescura no panorama musical). Foi estranho? Foi. Mas foi mais uma faceta do caleidoscópio que o Paredes se propôs montar neste ecléctico cartaz.
O after hours esteve a cargo de Lauer, que debitou música dançável para quem quer que ainda tivesse cartuchos para queimar. No meio da batida incansável, ouve-se “Vogue”, de Madonna, provavelmente numa celebração dos 60 anos da cantora. E assim terminou o terceiro dia do Paredes de Coura. Está tudo pronto para aquele que promete ser o evento do festival, a decorrer no último dia: o concerto dos colossos Arcade Fire. A eles juntar-se-ão ainda projectos como Big Thief, Dead Combo e Yasmine Hamdan. O sonho está quase a terminar.