Paredes de Coura 2019 (dia 1): The National foram reis, mas foram os Parcels a imperar
Os The National não vinham a Paredes de Coura desde 2005, ano em que tiveram por companhia no cartaz os então ainda desconhecidos Arcade Fire. Eram duas bandas em formato embriónico com um caminho de consagração rápida na sua frente – os canadianos voltaram o ano passado, este ano foi a vez dos americanos. Os The National convenceram e emocionaram o público do Paredes de Coura. Mas quem ganhou o prémio do público foram mesmo os Parcels. Foi uma primeira noite gloriosa e de elevada qualidade no festival das margens do Taboão.
Quem abriu as hostes foram os Bed Legs, embora nem toda a gente os tivesse conseguido ver, devido às longas filas que se formaram no exterior do recinto para trocar os bilhetes por pulseiras. Mas diz quem os viu que o rock da banda portuguesa convenceu os ouvidos no anfiteatro natural banhado pela luz dourada do pôr-do-sol. É sempre emocionante voltar a este lugar, cuja beleza só é compreendida quando experienciada.
O alinhamento prosseguiu na companhia de uma das vozes mais quentes que nasceu na folk nos últimos tempos. Julian Jacklin, compositora da Austrália, ficou surpreendida com a quantidade de pessoas que tinha a ouvi-la, sentada na relva a aproveitar os últimos raios de sol do dia. “Estão aqui 2 milhões de pessoas a mais do que aquilo que eu estava à espera”, confessou. E do público só recebeu calor – mais que merecido. A música de Jacklin remete-nos para a sonoridade dos anos 70, e parece-nos que vivemos um ambiente de nostalgia, que tem sabor a uma era já passada. A voz doce e dengosa da artista vai-se modelando de diversas emoções, e é pilar essencial do que testemunhámos. A timidez da artista é aos poucos impregnada do carinho de toda a colina, e Julia sai de sorriso rasgado. Estava aberta com chave de ouro esta edição do Paredes de Coura.
Foi uma novidade ver Boogarins sob uma luz que não fosse a de final de tarde. Mas a ausência do sol não impediu que a música da banda brasileira da Goiânia transparecesse luz através das suas sonoridades dreamy e do largo sorriso contagiante e constante de Dinho.
Muitos foram os braços levantados quando perguntaram quem é que estava a vê-los pela primeira vez; e pela recepção calorosa que tiveram ao longo do concerto, certamente que o número de braços levantados num próximo irá diminuir. Em Coura conseguiram criar uma atmosfera hipnotizante que nos levou a um Brasil ainda possível.
Vieram no papel de príncipes da noite, mas foram recebidos como reis. E nem os próprios estavam à espera, tendo sido emocionante ver a forma como reagiram à maior plateia para quem alguma vez tinham tocado. Mas não mascaremos os factos: não se trata de uma questão de número (poderíamos sempre dizer que o dia esgotou por causa de The National, e todas as restantes bandas serviriam apenas de aperitivo). Não. Os Parcels puseram toda a gente a dançar ao som do seu contagiante funk. Radiantes e atónitos com o cenário diante de si, passearam-se aos saltos pelo palco, dançaram, e vibraram connosco. Pelo meio sintonizaram aleatoriamente um rádio, e ouviram a plateia entoar “Encosta-te a mim”, de Jorge Palma, em uníssono.
“Lightenup” é um dos hinos desta edição do Paredes de Coura – ouve-se mesmo nas colunas de alguns campistas, à medida que passeamos pelas margens do rio Taboão. E no concerto teve direito à reação efusiva que já seria de esperar; mas a loucura distribui-se por todo o espectáculo, que teve direito a momentos mais progressivos e dissonantes. Os Parcels não esperavam este amor do público português; o ano passado, no Super Bock, ainda num estado mais embriónico e sem terem lançado nenhum trabalho, tinham diante de si uma plateia bem mais diminuta debaixo da pala do Pavilhão de Portugal, ao cair da tarde. Agora, foram os maestros da noite. A sua alegria contagiante vai continuar a pintar as cores deste festival. Nas conversas do dia seguinte, ouvimos quase sempre o mesmo: o concerto dos Parcels foi o momento da noite para muita da gente aqui acampada.
No cartaz que engloba todos os nomes desta edição do Paredes, os The National surgem em primeiro lugar. O som da banda americana não estava tão perfeito como a equalização dos restantes concertos que pintaram esta noite: faltava alguma definição, não se destrinçavam os contributos de todos os nove músicos presentes em cima do palco. Fora isso, os The National foram gigantes, emocionantes e épicos em toda a linha.
Os arranjos de guitarras dos irmãos Dessner são uma das grandes marcas do som da banda, e aqui saíram favorecidas: uma de cada lado do palco, a rasgarem as colunas de som com a montagem repetitiva dos riffs, que convida à abstração e à construção de cada tema. “Guilty Party”, que surge próxima do começo, é um dos grandes exemplos desta fórmula. E que bonito foi ouvi-la. Um dos maiores arrepios da noite.
“I need my girl”, “Mr. November” e “Terrible Love” foram algumas das canções melhor recebidas pelo público, que as cantaram a plenos pulmões. Matt Berninger era o maestro condutor desta festa; a voz do vocalista parece ir aquecendo ao longo da noite, e injecta emoção nas palavras que declama. Sim – porque a música dos The National também é feita de palavras. Uma curiosidade: um metro à nossa frente, alguém acompanhava no telemóvel as letras das músicas mais recentes, como se se tratasse do libreto de uma nova ópera pintada a rock.
Houve ainda tempo para os momentos mais calmos e intimistas, como a tremenda interpretação de “Light Years”. Os The National são mestres na arte da emoção, e “About Today” foi um dos mais expressivos exemplos disso mesmo: num crescendo de catarse que marcou a etapa final do concerto, com os metais de sopro a jogar com as guitarras numa dinâmica de beleza em estado bruto. A noite termina, contudo, em formato acústico: só as guitarras, e nada mais, estavam amplificadas – “Vanderlyle Crybaby Geeks” foi palco para a voz da plateia, em uníssono. Concerto memorável, que volta a consagrar (mais uma vez, e outra) uma banda tão amada pelo público português.
O corpo exigia descanso, mas a qualidade da música não dava tréguas. A festa seguiu no palco secundário com os KOKOKO!, colectivo do Congo que faz do afrohouse o seu bilhete de identidade. Os ritmos partidos e as melodias repetitivas e inspiradas do grupo terão deixado poucos corpos indiferentes. Era impossível não dançar. Os KOKOKO! apresentam-se como o som da Kinshasa de amanhã (a cidade que é a sua casa). E pareciam efectivamente vindos do futuro. Estamos em crer que passa pelo afrohouse o som do futuro – a tradição musical de África, quando sintonizada com os novos inputs electrónicos e uma desconstrução mais arriscada, tem muito para dar – e é de fruição muito imediata, apesar da sua complexidade. Um obrigado ao colectivo por aquilo que ainda deu a todos os presentes, depois de um dia tão cheio de boa música. Os resistentes ainda ficaram para a intensidade de Nuno Lopes, o DJ residente da casa. E a festa segue hoje com New Order, Car Seat Headrest, e o concerto consagração da banda que cresceu nas margens do Taboão – os Capitão Fausto.
Reportagem de Tiago Mendes, com contribuições de Ana Lídia e fotografia de Sofia Matos Silva.