‘Paris, Texas’: O reencontro com o que há de melhor em nós
Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1984, Paris, Texas é um dos mais deslumbrantes ensaios cinematográficos de que o espectador pode usufruir. Não obstante uma fotografia primorosa, é a simplicidade detalhada da obra que nos permite absorver todo um enredo de emoções, tão humanas quanto a própria realidade. Embalado pelo som da humilde, mas profunda banda sonora de Ry Cooder, o filme desenrola-se de forma igualmente despretensiosa ao longo da jornada de Travis (Harry Dean Stanton).
A obra é-nos entregue por Wim Wenders (de seu nome Ernst Wilhelm Wenders), cineasta, dramaturgo e produtor alemão que nos brindou igualmente com Asas do Desejo, Alice nas Cidades, O Estado das Coisas, entre outros conhecidos nomes da sua extensa e notória filmografia.
Sem querermos perder muito tempo em sinopses, mas sendo necessário uma breve contextualização, importa fazer referência ao desenrolar da acção. Quando Walt (Dean Stockwell) recebe uma chamada a alertá-lo de que o seu irmão havia sido encontrado (após quatro anos desaparecido), este vai prontamente ao seu encontro. É um Travis mudo, desorientado e obstinado com ideia de continuar a caminhar sem destino, que encontra naquela terra árida e inóspita. E é com muita dificuldade que consegue arrastá-lo até sua casa, onde vive com a mulher Anne (Aurore Clément) e o sobrinho, filho de Travis, que criaram como seu ao longo dos últimos anos. À medida que os dias passam e com ajuda do carinho e compreensão que recebe de Anne e do irmão, Travis recomeça a integrar-se no mundo e com as pessoas, lutando para criar uma ligação com o filho, Hunter, que desconfiado, mas curioso, apenas o olha como um estranho. É quando ambos se rendem ao amor que nutrem um pelo outro que Travis, assombrado pelo passado (até então desconhecido pelo espectador), decide expiar os seus pecados, partindo com o filho em busca da mãe (Nastassja Kinski), cujo paradeiro incógnito só deixou como pista o dinheiro que envia mensalmente para a educação do pequeno Hunter. A longa viagem empreendida por pai e filho não está apenas definida pelos quilómetros percorridos, estendendo-se também a uma travessia emocional de tréguas com o passado, consolidação do presente e resignação com o futuro pela parte de Travis, que, essencialmente fruto do vínculo que criou com o filho, ganha pela primeira vez coragem e determinação para se encarar a si próprio.
O clímax deste road movie dá-se aquando o encontro entre Jane e Travis, numa casa de peep show onde esta se encontra na altura a trabalhar. Separados pelo vidro da peep booth, onde apenas Travis consegue ver para o outro lado, as duas personagens voltam pela última vez a percorrer o passado intenso, febril e sombrio que viveram juntos. É o testemunho cândido de um amor tão profundo e destrutivo, capaz de vandalizar a sanidade daquele que o detém, emoldurado por uma fotografia inconfundível e por duas das melhores prestações do filme, que tornam esta cena simbólica num marco difícil de esquecer.
Mais, se complicado foi não se ficar preso àquela cena, é quase impossível digerir-se o final desta viagem, no qual Travis, humilde e virtuoso, encontra por fim rendição ao juntar mãe e filho, separados ao longo daqueles anos por sua culpa (ou assim o sente, não temos de concordar).
É a pureza deste protagonista (denominado como anti-herói para uns, aclamado como o verdadeiro herói para outros) que comove e afecta quem assiste à obra. Após o relato que faz a Jane na cabine, entendemos, talvez pela primeira vez, que é possível alguém ficar tão dilacerado pela culpa e pela dor ao ponto de perder a capacidade de viver. Quando o filme começa, Travis não vivia, existia. Caminhava sem destino numa fuga de si próprio, da identidade que deixou para trás e que só voltou a encontrar através da cumplicidade que criou com o filho, mas sem nunca reivindicar para si a figura de pai.
O filme termina e ficamos com uma falsa noção de final infeliz, de injustiça e revolta. Mas, mesmo que o espectador não compreenda, Travis está por fim em paz consigo próprio. Sabe que não poderá nunca aceitar a felicidade que uma vida junto ao filho e à mulher que ama lhe proporcionará. Aceita aquilo que consegue e a que se permite, um final feliz, mas para os outros.