Quão sustentável é a moda sustentável?
“Sustentabilidade é a habilidade da nossa sociedade humana em perpetuar-se dentro dos ciclos da natureza” , The Natural Step.
O conceito da sustentabilidade ecoa um pouco por todo o mundo, pelo menos no que toca ao discurso. É-nos vendido em modo clean, voz zen e vestido de tons “terra-pastel”. E se podemos dizer que a sustentabilidade está na moda, é propício perguntar se a Indústria da Moda pode ser Sustentável.
A questão embate na própria definição dos conceitos: enquanto a moda se caracteriza pelas constantes mudanças, (as chamadas tendências), a sustentabilidade, por sua vez, define-se pelo que se consegue manter. Soa a paradoxo? É porque se calhar é. Este artigo fala sobre a insustentabilidade do que vestimos, o impacto ambiental e social da indústria de moda e as alternativas ao sistema actual.
Como chegámos aqui
No século XIX, a Revolução Industrial trouxe consigo novas tecnologias como fábricas, a produção em massa e o pronto-a-vestir. Chegados ao século XX, no contexto da Segunda Guerra Mundial, surgiu a produção padronizada e, a partir dos anos 60, desenvolveu-se nas novas gerações uma cultura de valorização de tendências. Cerca de uma década depois nasceu a Zara e, em 1989, é cunhado o termo Fast Fashion pelo New York Times. Foi no virar do século que este novo modelo tomou conta das ruas e, sem darmos bem conta, de duas colecções anuais são agora lançadas vinte e quatro no mesmo período, com actualizações todas as semanas. “A liberalização dos mercados no início dos anos 90 criou um contexto legal fértil à exploração laboral e de recursos sem assumir as externalidades, sem que as corporações fossem legalmente vinculadas aos seus crimes e a responsabilidade legal por eles não saísse dos limítrofes das economias exploradas”, palavras de Salomé Areias, uma das fundadoras do movimento Fashion Revolution Portugal (FR), com quem falámos sobre o tema numa entrevista.
Mas façamos uma paragem no ano de 2013: o trágico desabamento do Raza Plaza, uma fábrica têxtil no Bangladesh, fez cerca de 1.134 vítimas mortais, centenas de feridos e deixou a nu o lado obscuro da moda. Seguiram-se incontáveis documentários sobre os impactos ambientais e sociais desta indústria (The True Cost em 2015, River Blue em 2017 e Made in Bangladesh em 2019, são alguns exemplos). Organizaram-se movimentos e campanhas de denúncia e sensibilização, protestos e dezenas de artigos foram redigidos. No entanto, ao mesmo tempo que se foi espalhando o alerta global sobre o tema, a fast fashion não só cresceu como parece ter evoluído para um novo conceito: o chamado ultra fast fashion. “Hoje assistimos à seguinte bizarria: metade do mundo é escravizado a produzir toneladas de roupa (porque precisa sobreviver) para a outra metade ser manipulada a comprar (porque precisa da dopamina) e descartar de volta para poluir a primeira metade (porque a lei de comércio internacional força esse fluxo para que se perpetue o ciclo compra-descarte)“, diz a activista.
A título de exemplo, a cadeia Shein, nascida na China em 2008 com o nome Sheinside, tem crescido (e muito!) no “submundo” das redes sociais. Esta marca é a antítese da sustentabilidade, fazendo com que lojas como a Zara pareçam slow fashion (não são). Não faltam acusações de plágio, abusos laborais, uso indevido de dados dos clientes e a larga utilização de substâncias tóxicas na produção do vestuário. Ainda assim a Shein parece somar e seguir, tendo na geração Z a esmagadora maioria do seu público.
Como é que, numa era onde não falta informação, estas empresas não só sobrevivem como proliferam? Os preços acessíveis, os looks apelativos, a obsolescência dos produtos, a compra impulsiva, a busca da novidade, bem como a influência nos meios digitais são factores que estão na origem deste fenómeno. Mas não só, como explica Salomé: “A Shein é uma das empresas de fast fashion mais bem sucedida (e com maior taxa de crescimento) do mundo porque aprendeu com a competição e dominou a mestria em manipular o consumidor. O site da Shein é um chorrilho de gatilhos de ansiedade e descontos que piscam. A nossa propensão natural à pressão de pares e à busca pela identidade e pertença é descaradamente explorada pela moda e pelas redes sociais.”
Exploração parece ser também o que as marcas fazem com a bandeira da sustentabilidade. Muitas têm vestido a camisola ecológica de várias formas. Mas fará sentido que marcas de fast fashion apregoem a sustentabilidade quando isso claramente choca de frente com a natureza do próprio negócio?
O actual sistema
Quem nunca esbarrou na frase: “a indústria têxtil é a segunda mais poluente do mundo”? De tão repetida, banalizou-se e nem sempre temos consciência do que significa, já que muitos de nós não vê o problema à sua frente: as lojas continuam abertas, os preços acessíveis, designs apetecíveis e roupa que “nunca mais acaba”. E isto é parte do problema.
É difícil calcular quão poluente é a indústria têxtil relativamente a outras. Não é possível isolar este sector, já que ele se cruza com outros como o dos transportes de mercadorias ou o do petróleo. A verdade é que se estivermos atentos, muitas vezes o valor que pagamos por uma camisa não paga mais do que os seus botões. E tão pouco sabemos os quilómetros e processos pelos quais passou a tal camisa até chegar às nossas mãos. Mas o custo existe.
O sistema de moda actual é linear, ou seja, extração de matéria prima, produção, utilização e descarte. Em toda a cadeia há uma enorme carga sobre os recursos, poluição, degradação do eco-sistema, além de um grande impacto social. Não é certamente novidade as condições de trabalho a que muitos trabalhadores estão sujeitos: ambiente de trabalho nocivo pelo uso de substâncias tóxicas nos processos de fabrico, pressões de tempo, muitas vezes trabalho infantil, jornadas longas de trabalho e claro, salários miseráveis. Todas as práticas danosas estendem-se à comunidade local, como as descargas durante os processos de tingimento que vão directamente para ribeiros ou rios, recursos essenciais às comunidades locais para pescar, beber água e tomar banho.
E por falar em água contaminada, num relatório super completo divulgado pela Fundação Ellen McArthur podem ler-se dados muito importantes sobre o impacto ambiental causado pela indústria têxtil como as 98 toneladas anuais de recursos não renováveis (petróleo, fertilizantes e produtos químicos) utilizados na indústria têxtil ou o consumo anual de cerca de 93 biliões de metros cúbicos de água na produção. Ou ainda que 20% da poluição industrial da água em todo o mundo deriva do tingimento e tratamento de têxteis e que, em 2015, as emissões de gases com efeito de estufa na produção totalizaram cerca de 1,2 biliões de toneladas de CO2. Ficamos a saber também que cerca de meio milhão de toneladas de microplásticos vão parar ao oceano anualmente, consequência de um descarte impulsionado pela indústria fast fashion que, segundo Salomé Areias, “precisa que o consumidor abra espaço no armário para comprar mais, precisando que a ‘doação de roupa’ tenha uma retórica de caridade”, diz Salomé, esclarecendo também que “a propósito, esta é a verdadeira fonte das microfibras no oceano, e não as nossas máquinas de lavar”. Após o descarte, no caso das fibras não biodegradáveis, é preciso esperar cerca de 200 anos para se decomporem.
Do lado de quem compra, ficamos a saber que a maioria das peças de roupa são descartadas nos primeiros três anos após a sua compra, segundo um estudo do Centro de Resiliência de Estocolmo, na Suécia. “A cada segundo, no mundo, um camião de lixo de roupas é queimado ou enviado para aterros”, diz Tatiana Valovaya, directora Geral de Gabinete das Nações Unidas em Genebra. Em Portugal, a Agência Portuguesa do Ambiente indica que descartamos, anualmente, cerca de 200 mil toneladas de roupa.
Segundo o Público, “em 2030 estima-se que o nível total de resíduos de vestuário possa chegar aos 148 milhões de toneladas, bem como um aumento do impacto climático na ordem dos 49%”. Como Salomé Areias refere, “o cérebro do consumidor é sobre-estimulado a comprar e, como se não bastasse, o sentimento de culpa que lhe é incutido por poluir está mais que provado que resulta em mais compras. Não é estranho. Simplesmente temos de ver porque é que as pessoas compram e como é que a crise climática está a ser comunicada”, esclarece a representante do Fashion Revolution.
A oferta sustentável
O caminho para uma sustentabilidade parece estar para lá da utopia, embora haja iniciativas nesse sentido. Serão viáveis?
A Moda Bio
Parece perfeito: Em relação ao algodão convencional, o algodão orgânico consome menos água já que 95% da água usada para cultivar algodão orgânico é água verde, ou seja, água da chuva e água armazenada no solo. Os níveis de poluição da água são reduzidos em 98%, consequência da ausência de pesticidas e fertilizantes nas plantações, diz-nos um relatório de 2011 da Water Footprint. A ausência de fertilizantes e as práticas agrícolas minimizadas permitem também uma redução da emissão de gases de efeito estufa na ordem dos 46%, além de permitir que o solo absorva CO2 da atmosfera, dados de um relatório de 2017 da Textiles Exchange. Mas o que acontece se o algodão orgânico substituir o convencional é um aumento brutal de produção que torna pior a emenda. Um relatório de 2015 revela que, quando feito de forma industrial, o cultivo de algodão orgânico pode, na verdade, produzir mais gases de efeito estufa do que o cultivo convencional. Além disso, para se obter a mesma quantidade de fibra orgânica em relação à geneticamente modificada, é necessária mais terra e consequentemente mais água, segundo dados de um estudo divulgado pela organização Cotton Inc.
A reciclagem
A solução “reciclagem” é muito proclamada mas, na verdade, menos de 1% das roupas são recicladas, de acordo com a Fundação Ellen MacArthur. “A quantidade é simplesmente demasiada para que tenha um sentido económico“, afirma Salomé. Outros 12% são usados na produção de produtos “secundários“, como material isolante, enchimento de colchões e panos, processo também designado por downcycling. Dada a quantidade de vestuário produzido anualmente a nível global, existe também uma tendência crescente de valorizar peças já existentes, o chamado upcycling. A reciclagem é um processo complexo, que exige desfazer completamente o tecido transformando-o em fibra, um método que requer um grande investimento tecnológico.
Além dos desafios técnicos e financeiros dos quais a reciclagem depende, quer seja de forma mecânica ou química, nenhum dos procedimentos é impoluto. Na reciclagem mecânica, aplicada essencialmente a fibras naturais como o algodão, o processo torna as fibras mais curtas, fazendo-as perder qualidade. Será sempre necessário que pelo menos 50% do tecido seja composto por fibra virgem para garantir o mínimo de qualidade. No caso da reciclagem química, é quebrada a cadeia de polímeros de forma a retomarem a sua forma original (monómeros), para voltar a construir.
Segundo a Vogue, têm surgido várias novas tecnologias promissoras na reciclagem têxtil, como a empresa sueca Renewcell, que produz material a partir de resíduos têxteis e existe actualmente uma maior atenção no design para a circularidade. No entanto, o impacto deste tipo de iniciativas está ainda longe de ser significativo.
Em última análise, a reciclagem ataca o sintoma em vez da raiz do problema. Continuamos a consumir demais e, considerando a problemática associada à reciclagem e o excesso de produção, não é possível olhar para a reciclagem como a varinha mágica da sustentabilidade na moda.
Roupa em segunda mão
A moda em segunda mão está na moda. Este tipo de comércio é mais uma forma que surge como a solução para todos os problemas: afinal, estamos a comprar o que já existe, evitando adquirir o novo com todos os impactos associados à sua produção, além de impedirmos que tais peças acabem em lixeiras e aterros, entre outros sítios de depósito.
Mas tudo fica meio azedo assim que se torna tendência, porque se massifica e torna tudo a uma escala incontrolável e uma fonte de problemas. Já não estamos a falar de pequenas lojas. A tendência da roupa em segunda mão já chegou ao comércio online (cujo crescimento traz consigo a questão da pegada de carbono deixada pelos envios das encomendas), apps e, mais recentemente, a alguns hipermercados e lojas como a Zara. O comércio de roupa em segunda mão está definitivamente em ascensão e com isso reaparecem as dinâmicas do fast fashion, ou seja, comprar em excesso a baixo custo. O que acontece depois é o aproveitamento das grandes multinacionais da moda, monopolizando este mercado, incentivando o aumento dos preços e, claro, o greenwashing — Isto está a acontecer agora. “Fast fashion e roupa em segunda mão crescem em conluio e a alta velocidade, como uma mão que lava a outra”, alerta Salomé.
Os contentores existentes em algumas lojas de roupa para depositar roupas usadas em troca de vales para descontar em novas compras é um pretexto perverso que impulsiona o descarte precoce e a aquisição de mais roupa. “Cada um de nós tem um mini aterro nos nossos armários”, lamenta Dily Williams, directora do Centro de Moda Sustentável do London College of Fashion.
No documentário The Environmental Disaster that is Fueled by Used Clothes and Fast Fashion, ou simplesmente “Dead White Man’s Clothes“, é exposta uma realidade onde podemos ver o percurso de muitas peças usadas doadas e dos que a recebem quando chegam ao Gana. Cerca de 15 milhões de peças de roupa chegam a Accra todas as semanas, vindas da Austrália, EUA, Reino Unido e Europa, enchendo o mercado Kantamanto, diz-nos Solomon Noi, director local do Departamento de Gerenciamento de Resíduos. Desta enorme quantidade de têxteis, 40% está inutilizável.
O greenwashing
Todas as alternativas acima descritas podem ser utilizadas como bandeiras que não passam de greenwashing – e muitas vezes é isso que acontece.
Definido pela primeira vez, em 1986, pelo ambientalista americano Jay Westerveld, greenwashing é o aproveitamento de valores éticos como estratégia de marketing para obter lucro. Actualmente, o conceito da sustentabilidade é sugado até ao tutano pelas estratégias de marketing. As marcas mudam a paleta de cores das suas coleções, escrevem nas etiquetas que se preocupam com o planeta e o consumidor compra (a ideia e a peça) achando que está a fazer o seu papel. Não faltam exemplos de marcas a utilizar palavras-chave tão vagas como “Consciente”, “Ecológico” e “Sustentável”, passando uma mensagem de cuidado ambiental, sem, no entanto, qualquer transparência nesse sentido. Desde empresas que alegam seguir as leis ambientais e laborais, ao mesmo tempo que terceirizam o trabalho para países onde o respeito pela lei não existe, a empresas que, pela remuneração mínima e pela não utilização de mão-de-obra infantil proclamam ética e sustentabilidade, quando isso se trata apenas dos mínimos exigidos por lei — há muito para resolver em termos de justiça social.
Nem tudo é greenwashing na moda, no entanto, nem sempre é clara a linha que separa o aproveitamento estratégico das verdadeiras boas intenções. No fim de contas, em todas as alternativas, vamos parar ao problema da quantidade, “é um problema matemático de volume, puro e simples”, refere Salomé Areias que acrescenta que “o movimento ecológico emergiu, mas o capitalismo apenas adaptou o objecto de desejo: quando o eco se tornou sexy, passou a produzi-lo em massa e com isto caímos num paradoxo”.
A verdade é que falar de sustentabilidade na indústria têxtil é complicado, tendo em conta que a base de qualquer empresa é o crescimento que, por sua vez, se mede pelas vendas. No caso específico da moda, será menos pela durabilidade e eficiência dos produtos, do que pelo seu design, modernidade, tendências e custo acessível que é mantido ou intensificado o consumo, ou seja, as vendas. Com esta premissa, estão reunidos todos os ingredientes para uma produção excessiva resultando num ciclo de vida curto e, inevitavelmente, no descarte precoce.
Como fazer escolhas mais sustentáveis?
Afinal, se todas as alternativas parecem não ser alternativas, qual é a alternativa? Não há uma resposta simples. Sabemos que o modelo actual não funciona e que a implementação de um sistema circular é essencial, expandindo o ciclo de vida dos produtos. Mas, como diz a representante do FR, “o caminho para a circularidade é, na verdade, um retorno à circularidade. Com a roupa é a mesma coisa: temos de recentrar-nos naquilo que são as nossas necessidades essenciais enquanto espécie, enquanto sociedade e enquanto parte integrante de outros ecossistemas com os quais somos interdependentes.”
A reciclagem, a reutilização, o biológico e a segunda mão são sempre opções, desde que, em cima da mesa, esteja sempre uma decisão informada e consciente. “O que precisa de acontecer é uma mudança real nos modelos de negócios”, diz à Vogue Laura Balmond, responsável pelo projeto “Make Fashion Circular” da Fundação Ellen MacArthur, acrescentando que “a indústria não pode fugir dos desafios que temos atualmente.”
É muito importante não nos deixarmos iludir pelas aparências: etiquetas com dizeres como “we care” e tons de castanho, cru e verde seco nas peças não significam, necessariamente, “ética” e “sustentabilidade”. Pode ser só marketing.
O Fashion Revolution é o maior movimento activista no universo da moda que mobiliza cidadãos, consumidores, criativos, produtores ou curiosos, no sentido de questionar o sistema. A campanha “Who Made My Clothes”, por exemplo, visa dinamizar uma consciência colectiva sobre o verdadeiro custo da moda. “É um simples (e aparentemente inofensivo) post em que todos podemos perguntar às marcas das nossas roupas, quem é que as fez e em que condições”, explica Salomé, em entrevista ao projecto Âncora Verde.
Outras escolhas que podemos fazer passam por comprar menos e evitar compras por impulso. Afinal, o consumo excessivo é sempre excessivo quer seja novo, reciclado, biológico ou em segunda mão. Manter as roupas em circulação por mais tempo — conserto, aluguer, revenda, upcycling, enfim – tudo o que for possível antes do descarte. Quando compramos roupa, tentar fazê-lo localmente ou, no caso de comprar online, optar por pontos de recolha.
Reduzir o consumo é parte da solução, mas é importante perceber que a questão vai muito para lá de uma lógica de mercado: “A indústria e o consumidor têm um papel que lhes foi dado pelo capitalismo, que é produzir e consumir. Mas indústria e consumidor são conceitos que só existem no espectro económico — nós não somos nem um nem outro. Somos seres humanos incrivelmente complexos e o nosso papel é desfrutar da vida e canalizar a nossa energia e criatividade para o bem comum“, sublinha a activista.
O caminho para uma moda mais consciente é possível, mas é um processo lento e longo que exige uma grande mudança na forma como a roupa é vista, produzida, consumida e descartada. A verdade é que se o mais sustentável é o que já existe, no têxtil isto assenta como uma luva.