Quarentena. Fui à rua…

por Rui Cruz,    15 Abril, 2020
Quarentena. Fui à rua…

Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Fui à rua. Calma! Não fui passear ou tossir para cima de desconhecidos, fui trabalhar ou, como escrevem os pategos quando o assunto é relacionado com artes, “trabalhar”. Pela primeira vez desde que isso começou saí de casa e andei mais do que 10 metros (a distância da minha casa ao supermercado) e confesso que a experiência é desconcertante. Pela primeira vez tive noção do quão estranha está a nossa realidade, porque uma coisa é estar em casa e ver imagens pela TV, outra é ver ao vivo. Ruas desertas, lojas e cafés fechados, meia dúzia de pessoas, todas com máscaras e luvas… de repente não estava em Portugal, estava num daqueles filmes Série B que passam no SyFy. Juro que, por momentos, dei por mim a pensar se iria aparecer algum tornado de tubarões ou mutantes com um olho e seis pernas em CGI manhoso típico do 90’s.

Sempre fui um fã de distopias, adoro filmes passados em cenários pós-apocalípticos e já passei vários dias da minha vida a traçar planos para um possível fim do mundo ou invasão zombie, (sim eu sei, passo demasiado tempo sozinho e sem nada para fazer, deixem-me!), mas a verdade é que agora, que parece que estou a viver no meio da minha fantasia, cheguei a conclusão de que afinal não gosto nem quero isto. Porque não é nada como tinha pensado que ia ser. Não há canibais a ouvir metal, não há casacos de cabedal com picos e cristas coloridas, não há comunidades de resistentes chefiados por cowboys ou ninjas, não há santuários pacíficos onde a vida continua simples apesar do terror fora de muros, não há anti-heróis carismáticos nem há durões de poucas palavras, mas muita honra, não há nada disto, há apenas um vazio insosso e cinzento e um sentimento de impotência tão avassalador quanto deprimente. E é isso que me chateia. Se é para isto, prefiro voltar àquela vida aborrecida e sem grandes surpresas que todos tínhamos antes, em que ganhar 20€ numa raspadinha ou ir sábado ao Cais era o pico da semana. E eu já nem sequer era grande fã dessa vida!

Acaba por ser devastador constatar que o presente é pior do que o passado. E nem estou a falar daquele passado idealizado, daquela “época dourada” que todos temos e em que imaginamos que íamos viver muito melhor e cujo estilo/ideais/arte/rotina eram mesmo à nossa medida, estou a falar do passado que existia há meses e que todos conhecemos porque o vivemos. Durante grande parte da minha vida, o dia de amanhã trazia sempre com ele a esperança de ser melhor do que o de hoje, agora traz apenas angústia, cepticismo e desalento.

Mas nem tudo é mau. É que se é isto que sair de casa nestes tempos traz, este sentimento de impotência e tristeza, posso garantir que ficar fechado até ao final da quarentena me vai parecer agora o corpo da Monica Bellucci: perfeito.

Aqui ficam as sugestões para o dia:

Comédia:

Sarah Silverman – Jesus is Magic

Música:

The Cure – Pornography

Cinema:

Victor Fleming – The Wizard of Oz

Literatura:

Vladimir Nabokov – Lolita

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