Quem foi e o que pensou Henri Bergson?

por Lucas Brandão,    13 Setembro, 2017
Quem foi e o que pensou Henri Bergson?
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No auge de uma filosofia reputada por nomes assinaláveis, tais como René Descartes, Immanuel Kant, ou Friedrich Nietzsche, surgiu um outro que, mesmo ausente do panorama mais célebre desta área do saber, coligiu uma série de ideias e de teorias marcantes. Esse foi o de Henri Bergson, um francês que dividiu a sua vida entre o século XIX e o XX, e que alcançou a ciência, ao ponto de discutir a natureza do tempo com o cientista Albert Einstein. Despojado de correntes associadas ao seu pensamento, também se interessou pela espiritualidade, falando de experiências imediatas e de intuição. Podendo ser, eventualmente, acusado de especulação, não passou incólume aos olhos da Fundação Nobel, que lhe atribuiu um Prémio Nobel da Literatura, em 1927, pelas ideias ricas em conteúdo, e brilhantes em vitalidade assumida e partilhada. Uma vida rica e totalizante, composta por um trabalho de mérito, e uma orquestra de conceitos apresentados e estudados.

Henri-Louis Bergson nasceu em Paris, no dia 18 de outubro de 1859, filho de uma família com origens polacas e judaicas. Tendo vivido por alguns anos em Londres, durante a sua infância, estabeleceu familiaridade com o inglês, para depois voltar a França, onde se consagrou como cidadão naturalizado francês. Apesar da educação judaica, frequentou um liceu parisiense, e, durante o tempo em que aqui esteve, tornou-se descrente das suas bases religiosas. Esta mudança foi desencadeada pela sua descoberta da teoria da evolução, proposta, acima de tudo, pelo inglês Charles Darwin. Neste período, ganhou prémios pelos seus trabalhos matemáticos e científicos, embora se sentisse dividido entre estes e os ligados às humanidades. Com dezanove anos, decidiu seguir estas, e licenciou-se em filosofia ao abrigo da Université de Paris.

Depois de se firmar como académico, seria selecionado para lecionar filosofia greco-romana, e filosofia moderna no Collège de France, para além de lecionar em vários outros departamentos da geografia francesa. Inicialmente, e para além da sua atividade como docente, mostrou créditos na redação de ensaios, examinando criticamente a cosmologia materialista do poeta romano Lucrétio. Foi numa tentativa de dar a conhecer os préstimos greco-romanos, no âmbito da filosofia e da literatura, que desenvolveu este trabalho, para além de outros sobre pensadores e autores como Aristóteles e Heráclito. Entretanto, voltaria a Darwin, com o qual viria a simpatizar cada vez mais, em especial devido às variações graduais das espécies em evolução, em detrimento da teoria do biólogo francês Jean-Baptiste Lamarck.

O francês casar-se-ia com uma prima do autor Marcel Proust – este que foi o padrinho desse matrimónio – de seu nome Louise Neuberger. O casal seria pai de Jeanne, uma criança que nasceu surda, no ano de 1896. Eventualmente, a sua carreira conhecia uma carreira cada vez mais consolidada, enrobustecida por uma série de ensaios e de incumbências cívicas. Consoante o seu prestígio cresceu, foram mais as funções que assumiu, tanto de delimitações geográficas nacionais, como internacionais.

No início do século XX, esteve presente no primeiro International Congress of Philosophy (1900, em Paris), onde leu um ensaio sobre as origens psicológicas da crença, aplicadas à própria lei da causalidade. Outra das temáticas que estudaria seria o riso, concebendo-o como um corretivo evoluído que possibilitava a existência de relações humanas, e como a comédia importante na integração de indivíduos na atividade social, nem que se prenda àqueles que não se adaptam à realidade. A relevância do seu contributo levá-lo-ia a juntar-se à Académie des Sciences Morales et Politiques, em 1901.

Bergson voltaria a Londres em 1908, onde estaria com o filósofo norte-americano William James, e com quem aprenderia parte da filosofia anglo-americana. A sua influência refletir-se-ia no campo da psicologia, especialmente no que toca ao estudo do pensamento como um fluxo de consciência, com o intelecto a estruturá-lo em forma de conceitos. Para além disso, o papel assumido pelos dois tornou-se similar em muito, tanto na rejeição do intelectualismo, como na própria abertura para além da esfera académica. O próprio americano sentiu-se interessado pelas várias noções estudadas por Bergson, embora não atribuísse atenção ao seu trabalho na linha metafísica. Mais do que a lógica, o estudo da realidade e dos fenómenos que a protagonizam assumiu um crescente foco na filosofia do anglófono. Por mais tentativas que James, que faleceu em 1910, encetou para a divulgação do trabalho de Bergson para os países de língua inglesa, essa adaptação veio mais tarde, embora se mostrasse presente nos congressos internacionais de filosofia.

Para além disto, foram várias as palestras que passou a dar fora de portas, em especial na Inglaterra. De forma concisa e lúcida, tornou-se interessante o suficiente para contar com a publicação de diversos ensaios seus nesse país, e para receber vários louvores daqueles que travavam conhecimento com ele. Os temas abordados prendiam-se substancialmente com matérias espirituais e para além do tipicamente debatido, abrangendo temáticas de várias ordens. Seguir-se-ia um convite para falar em diferentes universidades dos Estados Unidos, tanto discursando em francês, como em inglês. De volta a Inglaterra, seria empossado presidente da Society for Psychical Research. A sua popularidade havia alcançado proporções notáveis, com as suas obras a serem traduzidas para um grande número de idiomas, para além de se tornar conotado na Légion d’honneur francesa, e de ser membro da Académie Française, onde entraria em funcionamento em 1918.

Desde então, passou a granjear uma série de admiradores, tanto académicos como até políticos. Assim, foram diversos os movimentos que tiveram parte dos conceitos estudados por Bergson nas suas raízes, tais como o neo-catolicismo e o Modernismo, em França, e até a ramificação da teoria socialista e sindicalista, potenciando um pensamento mais crítico e consciente da realidade que essa teoria abarca. No que toca aos religiosos, e apesar da Igreja Católica banir três livros de Bergson por contrariar postulados defendidos por esta, acabou por ser um impulso para vários formularem a base para as suas premissas. Durante a Primeira Guerra Mundial, contribuiu, de forma ativa e periódica, com artigos de consciencialização e de inspiração ao pensamento crítico, para além de ter uma intervenção direta no acordar da entrada dos Estados Unidos no conflito bélico. Toda esta fase levou-o a testar os princípios que havia proposto outrora, nos seus vários ensaios, em que mente e matéria entraram em confronto, na forma de vida e de mecanismo. Vendo-os comprovados da pior forma, decidiu aceitar a publicação generalizada das suas obras.

“The idea of the future, pregnant with an infinity of possibilities, is thus more fruitful than the future itself, and this is why we find more charm in hope than in possession, in dreams than in reality.”

Essai sur les données immédiates de la conscience” (1889)

Isto conduziu-o a abrir os horizontes, e a apontar o seu olhar à ética social, e a um cenário de vida onde a sobrevivência pessoal seria privilegiada em relação ao resto. O filósofo fez esta análise sem descartar a relação entre mente e matéria que havia preconizado, aplicando-as às novas problemáticas que surgiam. Nos anos 20, tornou-se laureado em diversos institutos académicos, como na University of Cambridge. Porém, e empenhado no seu trabalho individual, ausentou-se das funções que exercia em órgãos de tutela governamental e académica, e colocou o seu discípulo e matemático Édouard Le Roy a dar as suas palestras, um católico fervoroso que colocaria fé, sentimentos e emoções à frente de qualquer dogma e da teologia especulativa. Em 1922, e com “Durée et Simultanéité, a propos de la Theorie d’Einstein”, protagonizou um debate com o cientista Albert Einstein, embora não se mostrasse à altura no que toca aos conhecimentos da Física, para além de não estar a par das novidades advindas desta área do saber. No entanto, esta problematização seria ressuscitada por um outro filósofo francês, de seu nome Maurice Merleau-Ponty. Este apontou que Bergson pretendia referir-se aos diversos paradoxos que interpretações populares desencadearam em relação à teoria da relatividade espacial, interpretações reforçadas pelo próprio físico.

O pensador viveu os últimos anos da sua vida em Paris, durante os quais soube da notícia que tinha vencido o Prémio Nobel da Literatura, no ano de 1927, pela obra “Creative Evolution”. No entanto, complicações reumáticas impediram-no de receber o prémio em Estocolmo, capital da Suécia. Um ano depois, seria nomeado membro honorário estrangeiro da American Academy of Arts and Sciences. Pouco tardou para que se retirasse oficialmente das lides profissionais, e para que caísse no esquecimento, prejudicado pelo reumatismo degenerativo, que o deixou bastante condicionado, e quase totalmente paralisado. Levantando os valores que o fizeram reivindicar a imaterialidade, abdicou de todos os postos e honras que recebeu, à exceção de uma adenda que o isentava das leis antissemitas do governo de Vichy, já depois dos anos 30. Henri Bergson viria, sem se converter a nada, e repudiando o sucedido no seu país, a partir no dia 3 de janeiro de 1941, na Paris já ocupada pelo exército nazi, depois de ser acometido por uma bronquite.

O trabalho do gaulês seria encabeçado por quatro grandes obras, que resumiam grosso modo dos ensaios que redigiu, de seus títulos “Essai sur les données immédiates de la conscience” (1889), “Matière et mémoire” (1896), “L’Évolution créatrice” (1907), e “Les deux sources de la morale et de la religion” (1932). No primeiro, explora a temática da livre vontade, para além das incongruências geradas na sua discussão entre os vários filósofos, na extensão e distensão do próprio conceito dessa vontade. Já no segundo, disseca a vertente neurológica no estudo da perceção e da memória. Relacionando corpo e mente, é uma obra na qual se reflete um árduo estudo e uma investigação meticulosa, na integração de eventuais patologias com as quais se deparou até então. O terceiro dos supramencionados é o mais conhecido do seu repertório, sendo aquele em que apresenta todas as noções estudadas no campo da biologia e da evolução dos seres vivos, advindas de nomes, como, para além de Darwin, o botanista holandês Hugo de Vries, o alemão Ernst Haeckel, e o mauritano Charles-Édouard Brown-Séguard. No entanto, e aplicada à humanidade, a evolução conhece um élan vital – impulso vital – que é, nada mais, nada menos, do que o próprio impulso criativo associado à existência humana.

Desta feita, a sua filosofia caraterizava-se pela refutação da mecanizada causalidade, e pela valorização da livre vontade, com a sua manifestação de forma autónoma e imprevisível. Mais do que a definição kantiana, que a coloca para lá do tempo e do espaço, no campo metafísico, Bergson tentou redefinir o tempo, o espaço, e a própria causalidade naquilo que é a duração. Esta, inefável, e apenas percetível através de imagens intuitivas, ilustrando o desenvolver e o envelhecer, e providas, diacronicamente, pela memória, é aquilo que, dentro de um tempo e de vários espaços, compreende a vida de um ser humano. É um conceito móvel e fluído, que é apenas cognoscível através da experiência e da intuição, tendo em conta a fragmentação e a relatividade da estimação do tempo. A noção foi introduzida em “Essai sur les données immédiates de la conscience”, e tentou trabalhar as inadequações de teóricos passados, tal como Kant, como confundir o tempo com representação espacial. A duração, na sua ótica, é inextensível, embora heterogénea, não podendo justapor as diferentes partes que causam umas às outras. No reverso do determinismo, e no auge dessa efervescência de vontade livre e intuitiva, surge essa duração.

“The pure present is an ungraspable advance of the past devouring the future. In truth, all sensation is already memory.”

Matière et mémoire” (1896)

O francês também estudou a criatividade, aplicada ao surgimento da novidade. Assim, definiu-a como resultado da criação indeterminada, ao contrário da tese mecanicista que existia. Mais do que previsibilidade, existe dinâmica e liberdade nesta abordagem inserida numa filosofia processual, que convida a ciência para ser problematizada, mas nem sempre rebatida, na melhor perceção dos meios que o ser humano dispõe. A crítica que fez à teoria do conhecimento de Kant, comparando a conceção de verdade à inversão simétrica da de Platão, levou-o a tentar redefinir a ligação entre ciência e metafísica, e inteligência e intuição. A mencionada duração alcança-se, na sua totalidade, através do conhecimento do absoluto e do real, dando azo à criativa imagética e metaforização para ilustrar, ao invés de usar conceitos, compreender a realidade. “L’Évolution créatrice” traz estas referências, levando a referir inteligência como algo que provém da evolução, e que é usado pelo indivíduo para seu usufruto e sobrevivência. Evitando os problemas especulativos e inverosímeis da metafísica, surge a ligação entre inteligência e intuição. Apesar de beber muito do pensamento do britânico Herbert Spencer, reforça o papel da criatividade nessa evolução e criação contínua de vida, onde a intuição resulta de uma inteligência que cresce em plena vivência, mais do que a mecânica que não o permitia visualizar uma cosmologia à escala universal.

Tudo isto sem esquecer a preciosa intuição, que advém da unicidade e multiplicidade que a duração assegura. Na abordagem do gaulês à metafísica, apresenta a intuição como algo que, na visualização absoluta e relativa de um dado objeto, leva a que surjam modos diferentes de adquirir conhecimento, e de enrobustecer a inteligência. Os dados intuitivos surgem como resultado da experiência, conectando-se às coisas às quais se referem, numa visualização realisticamente empírica. Na visualização absoluta, as perspetivas dividem-se, e constroem os seus conceitos em relação ao modelo da cidade que é visualizado, embora não consiga identificar e abranger a dimensão da mesma. A intuição consegue que, apesar de ancorar a referência a um dado elemento, remeter o raciocínio para o mesmo, e não para aquilo que aponta para si, não tendo o mesmo significado, a mesma escala, e diferenciando-se por si só.

A filosofia de vida de Bergson quis, assim, dar uma resposta forte e consistente ao mecanicismo que perdurava então, sem querer prever o futuro pela sua inquietude e imprevisibilidade. No entanto, nunca descartou as relações causa-efeito, que poderiam fazer tender o futuro para uma certa operacionalização. Assim, não deixou de procurar um ponto intermédio entre o mecanismo e o finalismo, através da noção de élan vital. Tornando a evolução mais natural e ambiental, identifica-o como o impulso criativo que move a humanidade na sua construção e desenvolvimento, não reduzindo a finalidade, contudo, do ser humano ser e se cumprir. Esta etapa só se consegue percecionar na observação da vida como um todo, como um conceito num elo indivisível.

Outro conceito de interessante destaque foi o riso, que o europeu caraterizou como sintomático de uma das duas tendências de vida, referindo-se à criação continuada de formas novas, opondo-se à degradação através da inércia e da mecânica. No entanto, o pensador apontou que que considerá-lo como critério moral é incorreto, pois pode causar danos graves à estima de alguém, apesar de divergir da teoria cartesiana do animal-máquina.

“In a society composed of pure intelligences there would probably be no more tears, though perhaps there would still be laughter; whereas highly emotional souls, in tune and unison with life, in whom every event would be sentimentally prolonged and re-echoed, would neither know nor understand laughter.”

“Le Rire : essai sur la signification du comique” (1900)

O pensamento de Bergson tratou de, numa visão que ultrapassa a dualidade e a dialética dicotómica, gerar grande controvérsia e celeuma no panorama da filosofia. Embora se sustentasse muito no papel da consciência, causou sensação com a sua teoria evolucionária, na qual se mede a mortalidade e a criação contínua de novas memórias, num amplo espectro heterogéneo, representativo daquilo que é o tempo. Um tempo que se transforma, na sua perceção intuitiva, numa duração qualitativa e interpenetrável entre impressões e conceitos. Sem nunca considerar o absoluto como vindo destes elementos, para além do simbolismo que pode adquirir, apresenta-se uma mundividência que se relativiza, para além do uno e do múltiplo, como uma perspetiva única e diferente dos cânones normalizados. Não obstante, as várias palestras nas quais teve voz ativa deram-lhe um prestígio convidativo à envolvência de vários admiradores das suas ideias e da sua presença.

Nomes, como o do inglês Bertrand Russell – no sentido de imputar falsas evidências sobre o método científico, para além da sua visão quanto à natureza da lógica e da matemática –  e o do francês Gaston Bachelard, questionaram a qualidade filosófica e o rigor dos postulados de Bergson, embora a fenomenologia de Merleau-Ponty, e o pensamento de Gilles Deleuze – que assumiu a duração como modelo – se tornassem bem bafejadas pelas ideias do compatriota. Para além disso, o grego Nikos Kazantzakis, nomeado por nove ocasiões ao Nobel da Literatura, tornou-se sintonizado com o pensamento do gaulês, este que o levou na sua asa no século XX; para além de uma série de autores hindus nesse mesmo período, que incorporou a evolução imaterial em consciência. A própria noção de intuição, e a perda de um cariz científico no pensamento, levou a que Bergson caísse em descrédito, entretanto, por vários nomes sonantes, que colocaram as teorias que viriam a propor, de uma certa forma, como influenciadas pelas propostas desse filósofo. Esse lote incluiu filósofos, como Theodor W. Adorno, Jean-Paul Sartre; o psicólogo Jean Piaget, e os autores André Gide e Virginia Woolf. As críticas adensaram-se, tanto vindas do Vaticano – acusando-o de panteísmo – como de pensadores, que o acusavam de espiritualismo. O élan vital foi, também, visualizado como um palco de grande subjetividade, descurando as teorias probabilísticas existentes, e que tornava as dimensões moral e psicológica bastante deturpadas, nessa aliança com a ciência.

Henri Bergson tornou-se um dos nomes mais contestados e, subsequentemente, esquecidos no mundo da filosofia. Para a história, porém, fica uma filosofia que, mais do que se situar num dualismo fixo e determinado, se deixou levar pela construção evolutiva, sem esquecer o papel do consciente. Psicologia e filosofia imbuíram-se de uma identidade que, sem esquecer a boleia da ciência, se modelou e se firmou num pensamento sui generis. Foi desta forma que, com várias influências, e ousando colocar em causa a filosofia de um dos grandes nomes do pensamento ocidental, Immanuel Kant, apontou o rumo para a experiência, que formaliza toda a evolução e desenvolvimento inter e intrapessoal. Em constante evolução, surge, desta feita, Henri Bergson, que, não obstante desdenhado, se viu, na diferença, espelhado.

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