Renaturalizar, o desafio de imaginar um Portugal selvagem

por Rewilding Portugal,    21 Abril, 2021
Renaturalizar, o desafio de imaginar um Portugal selvagem
Gerês / Fotografia de Diogo Tavares – Unsplash

Portugal é conhecido como “o belo jardim da Europa plantado à beira mar”, mas um olhar atento revela: parques naturais com belas paisagens mas despidos de vida (1), florestas de pinheiro e eucalipto com cicatrizes negras dos incêndios (2), e ainda rios domados onde a abundância de peixe deu lugar a escassez (3). Em Portugal, conservar o que resta de áreas naturais já não é suficiente. É preciso restaurar a natureza, renaturalizar, em inglês rewilding. Mas quando o que conhecemos está tão degradado e o estado original esquecido no passado, como é possível imaginar algo novo?

Primeiro, importa reconhecer as nossas limitações. Quando a natureza está em decadência à décadas, centenas e até milhares de anos, é muito difícil compreender o declínio da vida selvagem (4). Por exemplo, o coelho era um dos animais mais abundantes da Península Ibérico e hoje é raro e está em perigo de extinção, ou o lobo ibérico, que no início do século XX habitava a solarenga costa do Algarve e nos dias de hoje está restrito apenas às zonas Montanhosas do Norte de Portugal e Espanha (5).

Segundo, usar registos históricos e ecossistemas em zonas idênticas como inspiração para criar algo novo. Por exemplo, alguns rios nos Balcãs ainda correm livres, os peixes são abundantes, castores habitam os riachos secundários e as cheias sazonais ajudam a restabelecer aquíferos e pântanos (6).

Terceiro, reconhecer a nossa ignorância. Não compreendemos todas as ligações nos ecossistemas e em muitos casos a natureza consegue recuperar sozinha e por vezes espantosamente rápido, como quando uma barreira é eliminada num rio e os peixes voltam a aparecer em locais a montante depois de dezenas de anos de ausência. A melhor estratégia é acabar com os distúrbios, situações que impedem o funcionamento normal do ecossistema, nomeadamente evitar o fogo posto ou a caça furtiva, diminuir as barreiras à vida selvagem (por exemplo, descomissionar barragens obsoletas ou construir passagens para a vida selvagem em autoestradas), controlar / erradicar espécies invasoras ou reintroduzir espécies localmente extintas e depois de eliminar o distúrbio, deixar a natureza seguir o seu rumo (7).

Para ser selvagem, a natureza precisa de espaço, não pode ser feita em poucos hectares como se fosse um canteiro de jardim. Tem de ser feita em zonas vastas, a uma escala de paisagem. O abandono agrícola apresenta uma oportunidade para repensar o território e para devolver espaço à natureza. Depois de centenas de anos de expansão urbana e agrícola, em muitas zonas de Portugal o abandono de terras agrícolas marginais está a dar lugar a novas zonas de mato mediterrâneo com sobreiros, azinheiras, carvalhos, urzes e medronheiros (8). Para o conceito de Rewilding, existem 3cs que são fundamentais: Áreas protegidas core, onde o único e principal objetivo é a conservação da vida selvagem (em muitos parques naturais em Portugal a conservação da natureza é feita em terrenos agrícolas); corredores entres as áreas protegidas para permitir aos animais colonizar novas áreas (o urso pardo que visitou Portugal em 2019 usou um corredor ecológico que liga as áreas protegidas do Norte de Espanha, onde a espécie está estabelecida ao Parque de Montesinho, uma nova área de expansão), ou migrações entre populações de seres vivos (ligar a população Alentejana de lince ibérico às existentes no Sul de Espanha para aumentar a variabilidade genética); e ainda cadeias tróficas completas para o ecossistema se regular, sem necessidade de intervenção humana, com herbívoros que limpam a paisagem de excesso de vegetação e previnem incêndios florestais, predadores que controlam animais velhos, fracos e doentes e necrófagos que previnem o aparecimento de doenças.

Em Portugal, a paisagem está alterada, os pântanos e pauis foram drenados na Idade Média e o castor desapareceu na mesma altura. Como consequência, as zonas húmidas hoje são pequenas e raras, as plantas pantanosas são um dos grupos de plantas mais ameaçado em Portugal (9) e as ribeiras e riachos correm bravos no Inverno e secam no Verão. A nossa floresta de carvalhos, sobreiros, azinheiras e muitas outras espécies (10) foi destruída e os animais desapareceram. Hoje, pinheiros, eucaliptos e mato ardem no Verão e as árvores da nossa “floresta” são muitas vezes árvores exóticas como o eucalipto e a acácia. Temos de limpar matas com medo de incêndios, porque não há herbívoros selvagens, como é o caso da Cabra Montês, do Veado ou do Cavalo Selvagem. Restaurar linhas de água, porque não há castores (11). Controlar o número de javalis através da caça, porque não há lobos. Nós desequilibramos o ecossistema e agora temos de estar a desempenhar funções porque espécies e/ou processos estão ausentes.

Imaginemos por um momento um Portugal diferente. Salmões nadam desde o mar à nascente dos rios nas Montanhas do Gerês. No Estuário do Sado águias rabalvas (12) pescam. Existe uma colónia de focas monge (13) na Costa Vicentina que aproveita as águas ricas em peixe. Cabras Montesas pastam com vista para o mar na Serra da Arrábida. A Serra da Estrela é um bastião de biodiversidade e não uma serra sem vida (14). Manadas de veados, cavalos e vacas selvagens migram ao ritmo das estações entre serras, vales e planícies mantendo áreas abertas para aves de estepe, como a abetarda ou o sisão, e ajudam a preservar um mosaico de habitats que beneficia o coelho e a perdiz. Arribas com ninhos de aves de rapina e abutres. Lobos e linces ibéricos controlam os animais velhos, fracos e doentes, e previnem a pastagem excessiva. Rios correm livres, muitas barreiras já sem uso foram destruídas e as zonas pantanosas foram recuperadas. Belos nenúfares amarelos e brancos pintam as margens dos rios e suportam uma abundante vida selvagem: borboletas e libelinhas, peixes como o salmão e o esturjão, anfíbios e várias aves desde a bela cegonha negra ao pequeno guarda-rios azul.

Portugal pode ser mais selvagem, o desafio começa em conseguir imaginá-lo assim.

Crónica escrita por Daniel Veríssimo (Rewilding Portugal)
O Daniel é economista apaixonado pela natureza. Leitor de artigos e escritor nas horas vagas. Membro da rede internacional Rethinking Economics. Técnico de empreedendorismo.

Bibliografia:
(1) https://www.publico.pt/2020/01/15/p3/cronica/portugal-selvagem-1900317
(2) https://www.publico.pt/2020/08/12/infografia/retrato-floresta-portuguesa-512
(3) https://www.publico.pt/2020/10/14/p3/noticia/rios-portugal-ja-nao-sao-rios-1935064
(4) https://theconversation.com/forget-environmental-doom-and-gloom-young-people-draw-alternative-visions-of-natures-future-102004
(5) https://www.researchgate.net/publication/224090373_Genetic_assessment_of_the_Iberian_wolf_Canis_lupus_signatus_captive_breeding_program/figures?lo=1https://www.researchgate.net/publication/224090373_Genetic_assessment_of_the_Iberian_wolf_Canis_lupus_signatus_captive_breeding_program/figures?lo=1
(6) https://www.youtube.com/watch?v=5BzVS7YKAGA
(7) https://science.sciencemag.org/content/364/6438/eaav5570.full

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados