Rentes de Carvalho, que segredo é este?
Para prejuízo dos leitores portugueses, Rentes de Carvalho ainda passa por ilustre desconhecido aos olhos da esmagadora maioria. Contudo, tal está longe de se dever a qualquer demérito por parte do autor, e a isso já lá vamos, depois de lhe traçarmos uma curta biografia.
Transmontano de gema, nasceu em Vila Nova de Gaia (1930) e aí viveu até aos 15 anos. Mais tarde – por razões políticas – viu-se forçado a abandonar o país, tendo vivido em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Paris. Acaba por se fixar em Amesterdão, para onde é destacado como assessor do adido comercial da Embaixada do Brasil; aí, mais tarde, acaba por se licenciar na Universidade de Amesterdão com a tese “O povo na obra de Raul Brandão”. É nessa mesma universidade que lecciona Literatura Portuguesa de 1968 até 1988, data em que se reforma, passando a dedicar-se à escrita a tempo inteiro. A sua bibliografia contempla um vastíssimo leque de colaborações com revistas, publicações e jornais de diversas nacionalidades, de onde se destacam: Estado de S. Paulo, O Globo (Brasil), Expresso, Jornal de Letras (Lisboa), de Volkskrant (matutino holandês de referência), NRC-Handelsblad (o jornal holandês de maior renome), entre outros. A sua biobibliografia está – desde a 9ª edição – integrada na Grote Winkler Prins Encyclopedie, a mais ancestral das enciclopédias holandesas. Em 1991 foi-lhe concedido o grau de comendador da Ordem do Infante D.Henrique, distinção reservada a quem tenha prestado serviços relevantes aos portugueses, no País ou no estrangeiro.
Nos dias que correm, o escritor divide o tempo entre Estevais (pequena aldeia perto de Mugadouro) e Amesterdão, três meses cá e três meses lá. As viagens – como refere em entrevista recente – de lá para cá, e vice-versa, são sempre realizadas no Opel de matrícula holandesa. Segue sempre pelas mesmas estradas e pernoita nos mesmos hotéis. De resto, e como o próprio reconhece, a distância geográfica a que se prestou durante longos anos pode ter levado ao seu desconhecimento por terras lusas, embora nunca a qualquer tipo de ressentimento por parte do autor.
Fotografia de Adriano Miranda
No que às obras publicadas concerne, a lista é extensa. No entanto, e tendo em conta as circunstâncias acima referidas, grande parte foi originalmente publicada em neerlandês e quando o escritor ainda habitava exclusivamente em Amesterdão.
“O Meças”, penúltima obra de Rentes de Carvalho, publicada há sensivelmente 1 ano, é o motivo desta viagem. A história gira em torno de António Roque – o Meças -, homem transtornado pelas reminiscências e fantasmas de um passado por resolver. Possuído por repentes animalescos e uma fúria titânica que não sabe de onde vem, é capaz de perpetuar os mais violentos atos sem que nada o justifique. A narrativa tanto nos descreve uma personagem alcoólica e conflituosa – perdida nos rituais diários -, como nos transporta até ao seu passado: a infância renegada, as relações sociais que não percebe (e contra as quais se revolta), o “exílio” na Alemanha, etc. Porém, o autor alterna entre planos cronológicos distintos com tamanha naturalidade e suavidade, que por vezes se torna difícil situar a narrativa no espectro temporal.
Pelo meio, apresenta-nos a relação odiosa que a personagem mantém com o filho, e o misto de inveja e atração que nutre pela nora, resultando num cocktail explosivo, em tudo expectável.
O livro arranca com uma declaração peremptória de impotência, que acaba por marcar um registo que durará até ao final da obra: “Alguém terá de lhe emprestar as palavras, porque as desconhece, mas, se lhas tivessem ensinado, seria incapaz de dizê-las (…)“. É esta capacidade de desarmar – esta franqueza viril – com que Rentes de Carvalho sempre muniu as suas obras, mas que aumenta em destreza a cada obra, atingindo o pico no presente romance. De resto, assisti-se quase sempre a uma escolha irrepreensível de palavras, quer no que ao diálogo concerne, quer mesmo nas viagens temporais em que o narrador incorre.
Sem conhecer Rentes de Carvalho pessoalmente, diria que há muito dele próprio na forma de como o narrador desenrola a história. Há um retrato fiel na descrição minuciosa que faz da camada mais rasteira da sociedade portuguesa: o iletrado que habita o interior, longe das grandes metrópoles e, por isso, das oportunidades de se emancipar.
O autor reserva mesmo boa parte das suas considerações para a abordagem de uma certa portugalidade e para posterior desmistificação.
“Ao insulto pode responder-se com outro, não custa pagar a arrogância com moeda igual, mas dói, dói muito, quando sinceramente, e com fundamento, nos demonstram piedade pela pouca sorte de termos nascido num país de ternura, de tanta gentileza, mas ser ele há séculos coito de quadrilhas que pela força e o embuste chamam a si a lei, a impõem a uma gente que, amedrontada e pobre, se verga ao jugo e muda em subserviência o seu natural carinho (…) Longe de mim querer pôr outra gente nos cornos da lua para melhor acentuar a pequenez da minha, mas onde vou encontrar um chico-espertismo à portuguesa, a tão original mistura de trafulhice e ingenuidade?”
Por fim, e presente por toda a obra, há outro delicioso detalhe digno de destaque: a facilidade com que o narrador se transfere – a si próprio – do papel de predador para o de presa, e vice-versa. A capacidade de nos provocar empatia pela personagem mais vil, e mesmo nojo pela mais indefesa, é uma técnica quase-instituída nas melhores séries televisivas, embora dificílima de replicar por escrito, o que torna toda a obra ainda mais louvável.
José Riço Direitinho escreve, a propósito do autor, que este “escreve com a elegância e a destreza de quem maneja o florete”. Mas Rentes de Carvalho fá-lo contra si próprio, através da habilidade inata de transformar visões, posições que defende e situações que repugna num pedaço de arte coeso, embora permeável a muito do que o autor em si guarda.
Efetivamente, só lido.