Ricardo Araújo Pereira e o seu ‘Manual de Escrita Humorística’
Por esta altura, o primeiro livro (depois das crónicas e mixórdias editadas) de Ricardo Araújo Pereira já não é uma novidade e muito menos novidade será o seu sucesso, sendo que a obra está já na terceira edição, estando à venda há apenas poucas semanas. Torna-se, por isso, interessante analisar a obra em concreto, visto que o seu autor dispensa apresentações.
É com um saudoso descomprometimento que Ricardo Araújo Pereira nos avisa, desde cedo, no seu “Preâmbulo Relativamente Inútil”, cujo nome não concordamos que corresponda a uma verdade, que «todas as considerações sobre o humor são incompletas (excepto, talvez, esta)». Partindo deste pressuposto tido como certo (e de certa maneira, é-o efectivamente), que é o único que o autor assume como próximo de uma possível verdade, segue-se uma viagem por vários capítulos que teorizam sobre as várias formas que Ricardo Araújo Pereira conhece de se fazer, então, “humor”, essa arte abstracta mas que ainda assim ele domina tão bem. Tudo isto é descrito de uma forma agradável, que nunca se dá como certa. São apenas hipóteses que se levantam num tema que não tem uma resposta certa e absoluta.
Percebe-se, ao longo da obra, o imenso trabalho que a mesma terá dado. Perfeccionista confesso, “inseguro” – como o próprio tantas vezes o afirma -, esta obra relativamente pequena (o livro tem apenas umas sumarentas 118 páginas) é um mar de conhecimento. De séries a filmes, de textos soltos a obras literárias, Ricardo Araújo Pereira dá-nos uma verdadeira odisseia de conhecimento sobre as várias formas de criar conteúdos humorísticos. Mas não só. Todos estes conteúdos, além de analisados e explicados, mais que não seja no porquê de ali constarem, estão também perfeitamente interligados entre si resultando numa leitura fácil, agradável e corrida.
Talvez, indirectamente, Ricardo Araújo Pereira nos esteja a explicar um pouco do seu sucesso e a abrir um pouco as portas para o seu processo criativo, pois só um profundo conhecimento e uma abrangência enorme de cultura nos pode dar, a nós, mentes adultas, ideias e temas com que trabalhar e capacidade intelectual suficiente para desmistificar e desconstruir outros conteúdos que, à primeira análise, poderiam ser complicados de comentar, como o autor faz regularmente em crónicas e em programas televisivos.
É uma das possibilidades, a outra é encarar as coisas com um olhar especial, referido por Ricardo Araújo Pereira: «Olhar como mais ninguém olha significa adoptar um ponto de vista experimental; ver o que mais ninguém vê significa descobrir o que está escondido à vista de todos dentro do ponto de vista experimental» para mais à frente concluir ainda que «uma criança (ou um louco, ou um humorista) olha como mais ninguém olha». Aqui salientam-se (pelo menos) duas coisas. Primeiro, a hierarquia que o autor utiliza, colocando o “louco” à frente de “humorista”, como se quisesse dizer que há ainda mais loucura num humorista que num louco propriamente dito. Talvez a haja, visto que um louco age por vezes sem dar conta da sua loucura ao passo que um humorista dá azo à sua loucura de forma calculada. Em segundo lugar, ambos terão também uma imaturidade mais “censurável” que a de uma criança já que a mesma não sabe que é imatura, o louco pode ou não ter percepção da sua loucura e, mesmo que a tenha (à percepção), ela é incontrolável. Já um humorista sabe que a tem e dá-lhe uso.
Porventura é este olhar “imaturo” o segredo para o humor. A forma corrosiva com que se desconstrói uma ideia séria ou complicada envolve uma capacidade de abstracção que muitos adultos “normais” perderam. Ricardo Araújo Pereira refere sobre os adultos que estes se deixaram transformar em tal por «descuido ou insensatez», e que «a força do hábito endurece o olhar, e a rotina torna normal o que em tempos era horrível.» Aqui, sobre esta forma de ver as coisas, lembramo-nos de um exemplo sobejamente conhecido, o “das pessoas crescidas” que, na obra de Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho, no lugar de uma cobra a fazer a digestão de um elefante, veem antes um simples chapéu.
Ricardo Araújo Pereira deixou há muito tempo de ser conhecido apenas como “humorista”. Ele é hoje, mais do que isso, um pensador político e social, mas sobretudo um pensador. Um pensador com a extraordinária capacidade com que sempre se deu a conhecer, a de nos fazer rir, e bem, como este livro comprova. Recordamos John Cleese, como Ricardo Araújo Pereira o fez numa das suas entrevistas, referindo que é perfeitamente possível ter uma conversa ou discussão séria apresentando os nossos argumentos de forma humorística.
Quanto à fórmula para fazer humor, nem Ricardo Araújo Pereira, nem nós chegamos a qualquer conclusão. Quem ler o livro, ou o lê de maneira errada, ou também não chegará a uma fórmula mágica para fazer humor. Sabemos, sim, que não haverá tarefas muito mais compensatórias que colocar alguém a rir, sobretudo de forma incontrolável e sobre um assunto sério, porque, convenhamos, falar a sério sobre um assunto sério é fácil demais por ser o mais lógico. É por isso que, em relação a este assunto, a única certeza vem no seu “Preâmbulo Relativamente Inútil”: «o humor é contraditório como o caraças». É mesmo.
“A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar – Uma espécie de Manual de Escrita Humorística” é editado pela Tinta-da-China.