“Sentir & Saber”, de António Damásio: “Celebremos a riqueza e a confusão com que fomos dotados”
Após 26 anos sob a publicação d’O Erro de Descartes, António Damásio continua, com Sentir & Saber, a colocar o foco nos sentimentos, nas emoções e no papel que encetam na consciência e mente consciente humana. Apresenta-se mais económico nas páginas e o livro tem ao todo 46 capítulos, mas muito breves e bem lapidados na mensagem a passar. Havia uma intenção clara e assumida de ser mais eficiente, como o afirma no prólogo, até porque queria evitar o risco das suas principais ideias, as que de facto ambicionaria transmitir, “se perderem no meio de longas apresentações, mal sendo notadas, e muito menos saboreadas.” Uma dessas ideias principais é a refutação de que o problema duro — “como é que os processos físicos no cérebro dão origem à experiência consciente e porquê?” — não tem solução e pertence ao domínio do mistério. Damásio diz que não, que é um problema solúvel, apesar de não ser simples.
Essa é uma das grandes questões que coloca em palco no livro, como se formam, afinal, as mentes conscientes e quais as suas funções. Mas não o faz sem descurar outras duas grandes perguntas que sempre acompanharam a humanidade, de onde viemos e para onde vamos. Das ideias principais a reter é que, de facto, os sistemas nervosos complexos estiveram em último lugar no pensamento da natureza. A vida seria possível, portanto, sem eles. Podemos ficar maravilhados com o nível de consciência que o ser-humano conseguiu, mas houve um longo processo desenvolvido pela natureza para o qual temos de olhar com respeito e humildade. No princípio não veio o verbo e o ser-humano não constitui o puzzle em si, é uma parte do puzzle. Outra ideia importante é que o sistema nervoso, só por si, como parte isolada, não chega para explicar a inteligência e a consciência — é um complemento importante, mas não só.
Para um melhor e breve contexto, vale a pena recordar que, há 26 anos, através do livro O Erro de Descartes, António Damásio esclarecia o porquê da visão dualista de Descartes — razão vs corpo, razão vs sentimentos – estar errada. Se associarmos a esta ideia o título, “No início não era o verbo”, de um dos capítulos de Sentir & Saber, ficámos, igualmente, esclarecidos do porquê da proposição cartesiana, “Penso, logo existo”, estar errada também.
Nietzsche já havia levantado objecções a Descartes, por exemplo, na obra Além do Bem e do Mal. Um livro em que, curiosamente, lançou críticas a todas as formas de pensamento ou correntes existentes. A própria teoria da evolução das espécies e a descoberta do inconsciente por Freud (embora nem hoje seja uma ideia consensual, principalmente pela neurologia); abalaram a confiança humana, no sentido em que estas teorias acabavam por desmentir a ideia de que a nossa consciência nada teria a ver com o processo de evolução da natureza em si. Descartes solucionava o problema da origem da matéria e do pensamento (ou alma) — independentes entre si — como provenientes de Deus. Como somos seres imperfeitos, o perfeito, portanto, tem de ter origem em algo independente de nós. Esta solução acaba, também, por não responder, em parte, ao problema duro que Damásio aponta em Sentir & Saber, baptizado assim pelo filósofo David Chalmers.
Face aos desenvolvimentos modernos e à luz do desenvolvimento actual, Damásio afasta-se, desta forma, de duas correntes: a pampsiquista, que defende que a mente e consciência se encontram presentes em todos as coisas vivas (já vamos perceber a razão pela qual refuta esta ideia); e a corrente que olha como impossível a resolução do problema da consciência. Ou seja, a impossibilidade de se responder a esta questão, como é que um elemento físico-químico como o cérebro pode dar origem a estados mentais e a estados mentais conscientes?
Damásio explica: “A meu ver a formulação do problema duro é biologicamente incorrecta. Chalmers interroga-se quanto ao mecanismo que permitiria aos processos físicos do cérebro dar origem à experiência consciente, cuja natureza é tradicionalmente concebida como não-física. Todavia, embora o cérebro seja uma parte indispensável da geração da consciência, nada indica que ele o faça sozinho. Os tecidos nervosos exteriores ao cérebro e, importantemente, os tecidos não-neurais do organismo contribuem para a criação de todos os momentos conscientes, tendo de fazer parte integrante da solução do problema. E esse contributo tem, sobretudo, lugar através do processo do sentimento que considero o verdadeiro ponto de partida para as mentes conscientes.”
Mas vale a pena voltar a Descartes mais uma vez e, desta feita, tendo como referência o livro O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder. A referência não vem ao acaso porque, fora de preconceitos, O Mundo de Sofia toca nos pontos nevrálgicos da filosofia e é um excelente livro para adolescentes poderem ler. Mas mais, o capítulo dedicado a Descartes está muito bem escrito e explicado, até porque estabelece a ponte com a Inteligência Artificial, o que nos vai interessar mais à frente.
Descartes era dualista e, como tal, para o filósofo existia a alma, que mais não era do que a razão, e o resto seria a “extensão da matéria”, à qual pertenceria o corpo extenso, que existe e que ocupa, de facto, um lugar. A alma associada à razão, segundo Descartes, funcionaria independentemente do corpo; já os sentimentos e emoções, Descartes coloca-os dissociados da alma (razão) e associa-os, puramente, a funções biológicas do corpo que nada teriam a ver com a razão, nem haveria como a influenciar.
Damásio afirma o contrário, que os sentimentos desempenham um papel crucial na razão e, acima de tudo, na consciência. Como volta a referir em Sentir & Saber, “qualquer teoria que ignore e contorne o sistema nervoso na sua tentativa de justificar a existência da mente e da consciência está condenada ao fracasso. O sistema nervoso é o principal responsável pela concretização da mente, da consciência e do raciocínio criativo. Não obstante, qualquer teoria que dependa exclusivamente do sistema nervoso para justificar a existência da mente e da consciência está também condenada a falhar.” Até porque essa ideia seria, como já vimos, totalmente cartesiana e daí a afirmação já demonstrada, “os tecidos nervosos exteriores ao cérebro e, importantemente, os tecidos não-neurais do organismo contribuem para a criação de todos os momentos conscientes, tendo de fazer parte integrante da solução do problema. E esse contributo tem, sobretudo, lugar através do processo do sentimento que considero o verdadeiro ponto de partida para as mentes conscientes.” E complementa, “as tentativas vãs de explicar a consciência única e exclusivamente em termos de actividade nervosa são, em parte, responsáveis pela ideia de que a consciência é um mistério inexplicável.”
Na sua ideia, é essa mesma perspectiva que prevalece na maioria das teorias actuais. Teorias, essas, que precisam de compreender que, “embora seja verdade que a consciência, tal como a conhecemos só surge em toda a sua plenitude, nos organismos dotados de sistema nervoso, também é verdade que a consciência numerosas interações entre a parte central desses sistemas — o cérebro propriamente dito — e as várias componentes não nervosas do corpo. O corpo contribui para esta união com o sistema nervoso com a sua inteligência biológica oculta, a competência implícita que rege a vida cumprindo as exigências homeostáticas e que acaba por se manifestar na forma de sentimento. O facto de, em grande medida, o sentimento só existir graças ao sistema nervoso não altera esta realidade fundamental.”
Além de uma maior liberdade poética demonstrada, António Damásio não deixa de ir aos pontos essenciais de forma mais estratificada. De novo, oferece-nos a definição clara de emoção, de sentimento, de homeostasia (o processo de manutenção dos parâmetros fisiológicos de um organismo vivo) e, de forma peremptória, oferece-nos, igualmente, a definição de mente e de consciência — conceitos muitas vezes confundidos, mas que são diferentes entre si. A mente é caracterizada pelo plano de imagens de que somos alvo e se desenrolam. A consciência, ou uma mente que é consciente, ocorre quando o indivíduo se apercebe que os estados mentais criados dizem respeito a si próprio. Ou seja, o proprietário de uma mente sabe que esta lhe pertence e lhe diz respeito. A resposta para tal acontecer incide, também, nos sentimentos, os responsáveis pela interocepção, o estado consciente que permite fazer a ligação do eu, à constatação do que se passa no meu corpo.
A estrada para aqui chegarmos foi longa e, de facto, os sistemas nervosos complexos, os dotados de consciência, chegaram em último. Para termos o nosso sistema nervoso tal como ele é constituído actualmente, muito teve de acontecer antes. Por isso mesmo, Damásio faz uma distinção entre dois tipos de inteligência: inteligência explícita e inteligência não explícita. Primeiro vieram as inteligências não explícitas — as que permitem, por exemplo, a uma bactéria obedecer aos ditames da homeostasia e resolver os problemas básicos para a garantia da sua sobrevivência e manutenção. Depois surgiram as inteligências explícitas, a que os seres-humanos têm, por exemplo, dotadas de mente e mente consciente. Aglutinamos os dois tipos de inteligência. Um homo-sapiens possui uma inteligência não explicita como uma bactéria, daí poder existir a comparação, e possuímos, igualmente, uma inteligência explícita, aberta. Uma inteligência pode ter mente e ser consciente, mas nem todos os tipos de inteligência são conscientes. Ao fazer esta ressalva, Damásio dá-nos um banho de humildade. É verdade que nem todos os organismos vivos são conscientes, daí o afastamento da teoria pampsiquista, mas assim já compreendemos como a inteligência em si pode ser descentralizada do sistema nervoso e, mais, a continuação da vida natural não precisa da inteligência explícita e de sistemas nervosos complexos para continuar.
É verdade que Damásio não foca, uma única vez, o nome de Descartes no livro mas o último capítulo,de forma subentendida, lembra-nos como a robótica, capaz de racionalização operacional, sem autonomia nem a capacidade de sentir, nos aproxima mais de um mundo cartesiano. Para o neurocientista, esse é um passo que terá de ser dado. A Inteligência Artificial deverá ser capaz de sentir e ter consciência do seu estado interno, não, apenas, ser construída à imagem dos organismos naturais, com uma inteligência simples, sem sentimento. Ou seja, deveriam ser híbrido com tomada de consciência.
A demanda pela consciência não é nova e a obra que mais bem retrata, curiosamente, a questão da criação, a relação entre criação e criador e antecedeu, sem o esperar, a Inteligência Artificial, foi mesmo Frankenstein, de Mary Shelley. E porque é que o livro é ainda tão preciso nos dias de hoje? Em primeiro lugar, não diaboliza o ser criado. Este era provido de consciência e, por conseguinte, de sentimento. Como tal, teria de passar por todo um processo de aceitação, de aprendizagem e aprendizagem social como qualquer ser-humano. Os graves problemas acontecem quando é o próprio Victor Frankenstein — assustado, confuso e com repulsa do ser que criou — que se furta das suas obrigações para com a sua criação. No fundo, é em torno desta premissa que se desenrola o filme AI-Inteligência Artificial, de Spielberg. Quando se anuncia o desenvolvimento de robots em quase tudo semelhantes a uma criança, capazes de amar e ganhar estima, tal como um filho ama o seu pai e mãe, é-se directamente confrontado com a pergunta fatal. Seremos capazes de corresponder, enquanto humanos, às nossas obrigações para com esses seres híbridos?
Se alguém apresentasse, numa espécie de assembleia mundial, uma proposta para erradicar de vez e para sempre a fome e a pobreza infantil, certamente só num mundo idílico é que se conseguiria que todos estivessem de acordo. Iríamos, por conseguinte, almejar um acordo visasse o cumprimento das nossas obrigações perante “máquinas que sentem?”.