‘A Estranha Ordem das Coisas’ em perspetiva por António Damásio

por Lucas Brandão,    1 Novembro, 2017
‘A Estranha Ordem das Coisas’ em perspetiva por António Damásio
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A apresentação da obra “A Estranha Ordem das Coisas“, editada pela Temas e Debates, decorreu no pavilhão gimnodesportivo da Escola Secundária António Damásio, no dia 31 de outubro, mas não se ficou por uma mera introdução e contextualização daquilo que esta consiste. Contando com a fonte dos seus agradecimentos, Hanna Damásio, fiel companheira, na primeira fila, António Damásio fez uso da sua loquacidade e da eloquência ímpares para abordar uma série de questões que não se confinam à plataforma científica, mas que a convida para a atuação e interação com toda a realidade cultural.

O subtítulo do seu mais recente trabalho ressalva a vida, os sentimentos e as culturas humanas. Da vida, falou de toda a capacidade suprema que o ser humano tem e contém no seu âmago, desde o intelecto até à exemplar estrutura celular que o corpo apresenta, numa dinâmica de autorregulação constante e consistente. O conceito de homeostasia veio para ficar, trazendo, para lá do equilíbrio, todas as ferramentas e mecânicas para o pleno da atividade humana. Para além disso, os desígnios da bactéria, mesmo despojada de um sistema de regulação, surgem como especialmente peculiares, detendo uma espécie de intuição que consegue combater ou impedir uma série de infeções. A dinâmica gregária e solidária destaca-se, desta forma, num panorama biológico e neurocientista. Tudo isto não descura, claro está, o luminoso ambiente, a partir do qual toda a atmosfera interrelacionada se torna povoada. É neste decurso que surgem os sentimentos, elos de ligação para com o mundo, que se estabelecem a partir das célebres emoções, estas recortes das mais pungentes vivências.

Sobejamente conhecido pelo seu estudo das emoções e dos sentimentos naquilo que é a existência humana, Damásio transporta todo esse plano para o campo das estruturas culturais, desde as mais primitivas até às mais recentes, naquilo que carateriza como uma “epopeia cultural”. Os padrões de comportamento, tanto de conflito, como de cooperação, evidenciam-se como componentes-base da estruturação dessas culturas, acabando por ser transversais a uma série destas. No plano das mais atuais, não passaram incólumes, na discussão, os casos dos Estados Unidos e da Catalunha, para além da presença de extrema-direita na Áustria e na própria Alemanha. Tudo isto para trazer, como referência, que muito daquilo que são as emoções forjaram estas fragrâncias populistas, nas visões alternativas e sentidas de se percecionar e discutir a realidade. Estruturas culturais salutares, que traduzem os contextos espácio-temporais à luz dessa lente muito identitária. Assente na expressão do sentimento, a história relata-se, em seu passado, presente e futuro, com base naquilo que foi a dor, o sofrimento, a mágoa, a ira, a revolta, todos estes catalisadores de tempos de mudança, descrevendo novos capítulos e fases, na refutação dessas sensações.

Interessante é, também, a discussão do futuro da robótica, que surge por via de uma questão de uma das presentes e sagazes alunas da escola. É, precisamente, considerando as limitações da suscitação de emoções por parte dos robôs que surge um ceticismo que se alonga para a discussão das próprias fronteiras éticas dos avanços tecnológicos. Um outro aluno levantou curiosidade sobre o papel da biologia nas democracias modernas, que desencadeou o deleite de Damásio, de poder, a seu bel prazer, e como demonstra em toda a sua literatura, desdobrar-se na multidisciplinaridade que tenta cultivar no seu discurso. Ora, a homeostasia é recolocada e readaptada no seu pendor prático, que, em desequilíbrio, gera toda a gama de extremismos enunciados acima.

Como soluções, não escamoteou essa abordagem singular, que procura convergir cultura (definida com amplitude. no núcleo da sua obra) com a ciência, a tecnologia e, no seu acasalamento, a neurociência, destacando a educação como recurso indispensável na própria homeostasia social. Essa formação cultural, no sentido dos valores, das práticas e das tradições, mune-se desses mesmos sentimentos e da sua inteligibilidade para a consagração de um prisma de mudanças, de transições, de perceções para novas construções. Tudo sem esquecer as novas formas de comunicação e de informação, perante gerações de emoções partilhadas e criadas em contextos vários, e onde as redes sociais surgem com o imediatismo da perceção e da comoção. Em suma, mudam-se os tempos, mudam-se as virtualidades.

Fotografias de Rui Soares / CCA

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