Shakespeare ou não Shakespeare? Eis o teatro

por Lucas Brandão,    15 Agosto, 2018
Shakespeare ou não Shakespeare? Eis o teatro
William Shakespeare / O “Retrato de Chandos”; pintura atribuída a John Taylor / National Portrait Gallery, Londres.

William Shakespeare transporta um dos mais notáveis legados da história da literatura. Sobrevive, nos dias de hoje, como um dos responsáveis pela consolidação do idioma do inglês e como um marco na própria cultura britânica. O seu percurso pelos palcos não se remeteu à dramaturgia, que contém inúmeros trabalhos, mas também à sua interpretação, com a sua companhia Lord Chamberlain’s Men. Shakespeare é uma das referências mundiais, transversais ao saber, ao ser e ao sentir dos tempos e dos espaços até à atualidade.

Nascido e falecido em Stratford-upon-Avon, em Inglaterra, Shakespeare, a quem se questionou tanto a identidade e a autoria das suas peças e dos poemas, cresceu e mostrou-se nos séculos XVI e XVII, num período em que o país embarcava em mais uma das suas fases conturbadas. Entre as primeiras interrogações que se colocavam à monarquia inglesa, não se colocou em causa o talento e o engenho do dramaturgo, que passava a vida nas suas inspirações romanas e anteriores ao seu presente. Algumas dessas interrogações remetem para as obras “Titus Andronicus” (uma tragédia que remete para o império romano de Tito, sendo uma das obras mais sangrentas do seu repertório), “The Two Noble Kinsmen” (uma tragicomédia na Grécia Antiga) e “Cardenio” (peça que, apesar de interpretada, se perdeu, assim como a própria sanidade do protagonista, de seu nome Cardenio). Assume-se que a autoria foi dividida com outros autores de então, amigos de Shakespeare, mas que indiciam, desde já, uma tradição muito particular.

As peças

Os primeiros trabalhos chegam no final do século XVI em “Richard III” (contando o percurso maquiavélico do monarca até ao poder) e “Henry VI” (dividido em três partes distintas, abordando as suas problemáticas no reinado), marcando o percurso da Guerra das Rosas inglesa (sucessora da Guerra dos Cem Anos). A este dramatizar histórico, juntam-se “The Comedy of Errors” (uma das mais curtas peças, destinada a ser uma comédia satírica), “The Taming of the Shrew” (uma outra comédia, acusada de ser misógina) e “The Two Gentlemen of Verona” (a amizade e a infidelidade são dois dos temas que introduzem o percurso shakespeariano). É um percurso que se inspira, em especial, em Séneca e no seu conterrâneo Christopher Marlowe, vincando o caráter corrupto e mesquinho de quem governa, para além de menorizar o papel da mulher.

Porém, seria do percurso subsequente que surgiriam algumas das mais notáveis e românticas comédias do seu repertório. “A Midsummer Night’s Dream” lança Teseu e Hipólita no meio de um ambiente onírico, orientado por fadas florestais. Por sua vez, “Merchant of Venice” traz o estereótipo judaico de Shylock, um usurário vingativo e mal-intencionado. A estes, segue-se o redentor “Much Ado About Nothing”, na transformação do amor desencontrado no seu bem encaminhar, o pastoril “As You Like It”, onde Rosalind procura a pureza e genuinidade da floresta, longe dos artifícios da corte, e “Twelfth Night”, que distancia duas gémeas num naufrágio, acabando por se apaixonar em lugares distintos, por homens distintos. Entretanto, Shakespeare regressa à história do seu país, escrevendo duas partes sobre “Henry IV”, para além de “Richard II” e “Henry V”, englobando a Guerra dos Cem Anos nos séculos XIV e XV. Denota-se a crescente complexidade das personagens, numa variedade que se ia impondo no que escrevia, tanto em qualidade como em quantidade, e que remata em duas das tragédias mais notáveis da história da dramaturgia.

O homem que não tem a música dentro de si e que não se emociona com um concerto de doces acordes é capaz de traições, de conjuras e de rapinas.

“Merchant of Venice”

São estas “Romeo and Juliet” e “Julius Caesar”. A primeira traça-nos a mais relevante relação entre jovens que conhecemos no nosso subconsciente, oscilando entre a comédia e a tragédia até chegar à rivalidade que separa as duas famílias dos protagonistas, no cenário apaixonante de Verona. Romeu e Julieta são, assim, o mote para uma redenção que só se cumpre após a morte. Por sua vez, “Julius Caesar”, inspirada em Petrarca, remonta às glórias e histórias do imperador Júlio César até ao seu assassinato, desencadeado e complementado pela traição de Brutus. Quando arranca o século XVII, o inglês complexifica um pouco naquilo que redige, trazendo três das mais nefastas e obscuras tragédias do seu cunho. “Measure for Measure” joga com a justiça, a corruptibilidade, a misericórdia e a virtude na cidade fria e histórica de Viena; “Troilus and Cressida” revela o desmoronar de um amor por via do desmascarar das hierarquias e das honras, entre infidelidades e preconceitos; já “Ali’s Well That Ends Well” enreda as peripécias de um amor que é conquistado a todo o custo, trespassando a própria substância do sentimento.

Nesta vontade de imortalizar o dramatismo, nasce a célebre “Hamlet”, peça que revela as questões e hesitações de um homem, por mais poder que tenha. Impõe-se o existencialismo em “ser ou não ser: eis a questão”. Dinamarca recebe a vontade do filho do rei Hamlet se vingar sobre o usurpador do seu tio, Cláudio, num enredo inspirado na lenda escandinava de Amleth. São mais as perguntas do que as respostas, são mais os dilemas do que as certezas. É neste percurso de um fluxo de consciência à escala do discurso direto do teatro que também se cruzam as célebres personagens da trágica Ofélia, do ressentido Laertes e da frágil Gertrude, mãe de Hamlet e casada com Cláudio. Passando para Veneza, nasce “Otelo”, no confronto entre o general mouro Otelo e o seu braço-direito Iago, que se revela num traidor quando acentua o caráter trágico da obra no assassinato da amada de Otelo, Desdemona. A tragédia alimenta-se deste tomar de consciência da malvadez de Iago, por mais que Otelo lhe deposite confiança, e no que se segue ao seu crime.

Ser ou não ser, essa é a questão: será mais nobre suportar na mente as flechadas da trágica fortuna, ou tomar armas contra um mar de obstáculos e, enfrentando-os, vencer? Morrer — dormir, nada mais; e dizer que pelo sono se findam as dores, como os mil abalos inerentes à carne — é a conclusão que devemos buscar. Morrer — dormir; dormir, talvez sonhar — eis o problema: pois os sonhos que vierem nesse sono de morte, uma vez livres deste invólucro mortal, fazem cismar. Esse é o motivo que prolonga a desdita desta vida.

“Hamlet”

Com proporções similares, “King Lear” acompanha a crescente loucura do rei, Lear, quando cede o poder a duas das suas filhas, Goneril e Regan, que o foram bajulando em busca do poder desejado por ambas. Inspirando-se na lenda de Lear da Bretanha, são trágicas as consequências que este passar de testemunho gera, incluindo a morte da sua terceira filha, Cordelia, que as duas outras sempre desdenharam e invejaram. Shakespeare prossegue neste estudo trágico e alcança “Macbeth”, onde um general escocês recebe a profecia de que se irá tornar rei do seu país. A ambição torna-se de tal forma desmesurada que acaba por matar o monarca vigente, Duncan, e assume o seu lugar. A tirania é o caminho encontrado para se proteger da oposição e da revolta dos populares, acabando num destino trágico para si e para a sua companheira, Lady Macbeth. Os factos voltam a chegar às peças de Shakespeare com “Antony and Cleopatra”, em mais uma inspiração em Plutarco. A relação de Marco António e de Cleópatra é narrado desde as revoltas sicilianas até ao suicídio de Cleópatra, que coincide com a vitória de Octávio César Augusto perante o seu amado. Alexandria, mais sensual e prazerosa, contrasta com a austera e fria Roma, centralidade do poder imperial. À imagem deste, também “Coriolanus” conta factos verídicos, neste caso o percurso de poder do romano Coriolano, numa luta de altos e baixos pelo poder máximo do Império, após vários êxitos militares e políticos.

No período final de Shakespeare, as tragédias encontram o seu ponto de reconciliação e de correção, encontrando-se com a serenidade do erro e a possibilidade deste ser o mote para um final mais positivo para os envolvidos. “Cymbeline” traz a ação para a antiga Bretanha, inspirando-se na sua Matéria (a sua literatura medieval) e no reinado de Cunobelino para narrar as vicissitudes impostas pelo egoísmo e pela inveja nos galanteios feitos a Imogen, filha do rei Cymbeline. “The Winter’s Tale” catapulta a Sicília para o protagonismo, para além do seu rei, Leontes, e da sua amada, Hermione, que é alvo dos devaneios do monarca, que só saram com o passar do tempo. Ainda antes de “Pericles, Prince of Tyre” (a ação sucede-se na Fenícia, agora Líbano, e nas peripécias deste após se ver obrigado a sair da sua cidade, para além do crescimento à distância da sua filha, Marina), Shakespeare encerra a sua epopeia dramática com “The Tempest”. Prospero, um feiticeiro e duque de Milão de direito, tenta que a sua filha Miranda assuma um lugar de destaque na sociedade real e conjura uma tempestade, procurando causar o desespero do rei de Nápoles, Alonso, e do irmão de Prospero, Antonio. Eventualmente, a redenção é feita por parte do rei, para além de se revelar a usurpação de poder de Antonio em relação a Prospero, o que desencadeia num final feliz e no matrimónio de Miranda com o príncipe Fernando, filho de Alonso. A inspiração clássica notabiliza-se numa obra mais sóbria, mais refreada nas consequências trágicas e na serenidade final das personagens, contrastante com várias das suas peças de destaque.

A poesia e o estilo

William Shakespeare também se destacou pelo engenho da sua poesia, cuja inspiração também se vira para as civilizações greco-romanas. “Venus and Adonis” assiste à resistência do jovem Adónis em relação ao assédio de Vénus, num contraste entre o corpo e a alma, o prazer carnal e o prazer natural, a dimensão dionisíaca com a natureza apolínea. Por sua vez, a tradição trágica do britânico chega em “The Rape of Lucrece”, em que a romana Lucrécia é violada por Tarquin, soldado, gerando várias consequências sociais e que acabam na expulsão do legionário da região. O poema é disposto em 265 estrofes, cada uma com sete versos, num formato rimático ABABBCC (conhecido como rima real), para além do tradicional pentâmetro iâmbico, com cada verso a ter cinco pés silábicos.

“A Lover’s Complaint” assume a voz de uma jovem que se arrepende e que lamenta o galanteio de um amado que a seduziu e a abandonou. As alegorias também são parte da poesia de Shakespeare em “The Phoenix and the Turtle”, num trabalho que desencadeou várias interpretações diversas. Trata-se, assim, da representação do funeral de uma fénix e do seu grande amor, uma rola (em inglês, turtledove), que consagra a união dos vários pássaros para lá das lógicas subjacentes. A transcendência dá-se em torno da simbologia das espécies a enterrar, da perfeição e da devoção conjugal inerentes. No entanto, grande parte da poesia shakespeariana fez-se sentir nos seus sonetos, numa influência que bebe de Petrarca e de Dante. Os sonetos fazem uma reflexão que resulta das tradições passadas, passando pelo amor e pela sua natureza, pela carnalidade, pela procriação, pela dualidade vida-morte e pelo tempo.

Esta estação do ano podes vê-la
em mim: folhas caindo ou já caídas;
ramos que o frémito do frio gela;
árvore em ruína, aves despedidas.
E podes ver em mim, crepuscular,
o dia que se extingue sobre o poente,
com a noite sem astros a anunciar
o repouso da morte, gradualmente.
Ou podes ver o lume extraordinário,
morrendo do que vive: a claridade,
deitado sobre o leito mortuário
que é a cinza da sua mocidade.
Eis o que torna o teu amor mais forte:
amar quem está tão próximo da morte.

“Sonetos”

A poesia aproxima-se, assim, dos temas e das realidades do seu teatro, numa linguagem que se tornou bastante particular, elementar na formação social e cultural inglesa. No entanto, o discurso poético sentiu-se mais desenvolvido e metaforizado por via da necessidade de ser declamada retoricamente, mais do que interpretada e representada, mesmo com vários discursos, monólogos e solilóquios que protagonizam as peças shakespearianas. O registo, inicialmente moldado às suas próprias necessidades e vontades, mais do que aos pretextos das narrativas, passou a ajustar-se a essas mesmas, interpretando as exigências das personagens. O verso branco acentua a fluidez desses discursos, sem a necessidade de impor rimas para a sua articulação. Ajustando-o às personagens que entoam as falas, Shakespeare emprega o encavalgamento, na transição de ideias e de percursos por entre os versos, para além das pausas e interrupções faladas e das oscilações estruturais no discurso. O rasgo poético cruza-se com o pragmatismo dramático, redobrando esforços para a narrativa se tornar aliciante, para além dos meros protagonistas. A diversidade de tons e de tonalidades sentem-se na capacidade de se formarem vários arquétipos de personagens, como os jovens ambiciosos e apaixonados pela vida (Romeu e Julieta), os reis generosos e dispostos a desdobrarem-se pelos seus (King Lear), a ambição amplificada pelo poder (Macbeth) e o percurso que uma morte inesperada faz no amor de uma vida (Othelo).

A influência

Do século XVI até aos dias de hoje, William Shakespeare possui uma influência gritante e gigante em todos os termos e pelas formas de expressão dramática e lírica em teatro. Da caraterização das personagens até à linguagem de cada uma delas, para além das narrativas e da identidade do género literário, marcou profundamente toda a tradição literária anglófona que desde aí se seguiu. Entre Thomas Hardy, William Faulkner e Charles Dickens, alcançou também o mundo da música, nas óperas “Otello” e “Falstaff”, de Giuseppe Verdi, da pintura, marcando o movimento romântico e os pré-Rafaelitas, do cinema, em especial as diversas adaptações e interpretação de Orson Welles, e da psicologia, no entendimento profundo e metódico de Sigmund Freud da natureza humana.

A própria estruturação do idioma inglês, tanto no que toca à pronunciação (nas interpretações feitas no seu teatro), ao discurso e às suas dimensões gramaticais, deve muito ao percurso de Shakespeare, que se viu citado por várias ocasiões no “A Dictionary of the English Language”, de Samuel Johnson. Um reconhecimento que se foi consumando com a passagem do tempo e que despertou a partir do século XVIII, com a emergência de rostos estrangeiros, como o filósofo Voltaire e os autores Goethe e Stendhal, para além do filósofo Samuel Coleridge e do crítico August Schlegel. A Era Vitoriana serviu para enaltecer a grandiosidade do “Bardo”, como passou a ser conhecido, transmitindo uma influência para o teatro que ganhou amplitude no século XX, com o expressionismo alemão e o futurismo soviético. O estudo da sua obra perdura até aos dias de hoje, em movimentos emergentes e de premente importância, numa dinâmica pós-modernista, como os estudos queer, o feminismo, os estudos afroamericanos, o estruturalismo e a Nova História (uma nova abordagem historiográfica, no estudo das formações coletivas e das suas representações individuais e sociais).

William Shakespeare transporta um legado que se perpetua para lá daqueles que são os nossos dias. A importância do dramaturgo alcança uma grandiosidade incomum, que transpira um intenso estudo sobre a condição humana no passado e no seu presente. É um legado que surge como relevante em várias áreas do saber, transversais entre ciências, humanidades e outras mais. Com mais ou menos lirismo, mais ou menos entoação, mais ou menos tragédia, Shakespeare é a consagração, entre dilemas de identidade, de uma tradição literária que se estuda e se entende na permanência da paixão pela arte, como forma de entendimento profundo da humanidade.

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