Shore: a folk dos Fleet Foxes continua a reconfortar

por Tiago Mendes,    24 Setembro, 2020
<i>Shore</i>: a folk dos Fleet Foxes continua a reconfortar
Capa do disco
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Ao quarto disco, os Fleet Foxes continuam a não desiludir os ouvidos atentos que os escutam. A carreira de Robin Pecknold permanece sem mácula, no trilho de uma folk simultaneamente acessível e criativa. Agendada para a hora exacta do equinócio de Outono – em Portugal, às 14h31 da passada terça-feira – a estreia internacional de Shore volta a sublinhar a ligação entre a natureza e a arte de Pecknold. Há já mais de uma década que a sua discografia vem tecendo uma carreira que parte do bosque para a cidade – é raro o tema em que a terra, o mar, o sol ou algum outro elemento natural não estão presentes. Serve-se de uma linguagem poética e sensorial para abordar as histórias e emoções que quer partilhar; fá-lo com mestria, e tendo por veículo a sua característica voz.

Para melhor identificarmos a essência de Shore será importante olhar a discografia dos Fleet Foxes. Os primeiros dois discos apresentaram-se por meio de uma produção límpida e de um estilo de composição mais directo. Uma folk envolvente, entusiasmante, emocionante, imediata na interpelação, muito à custa do bonito trabalho de guitarras, harmonias vocais arrepiantes e belas melodias. Para muitos fãs, esta primeira fase da banda continua a ser a mais marcante, e é a assinatura pela qual os Fleet Foxes continuam a ser conhecidos. Mas em 2017, seis anos depois de Helplessness Blues, Robin Pecknold lança aquela que, na minha opinião, é a sua obra-prima – Crack-Up. Esse novo trabalho dava um passo à frente no assumir de uma maior dinâmica sónica: progressivo na forma e arriscado na performance, capaz de convocar momentos de catarse e mergulhar em passagens sombrias e dissonantes, sem comprometer a unidade do álbum.

Shore acompanha Crack-Up na espacialidade da produção, mas é mais contido na construção. São discos irmãos na sonoridade, mas o trabalho recém-chegado apresenta-se mais aprazível e luminoso, numa estética quente e aconchegante. A ambição de Pecknold foi canalizada de forma diferente, e é bem sucedido naquilo a que se propõe – um trabalho acessível (em comparação com o seu antecessor), embora tecido a composições que não chegam aos picos de Crack-Up. Há alguma dificuldade em escolher os maiores destaques do novo álbum, por apresentar uma qualidade relativamente uniforme ao longo dos seus 55 minutos; é impressionante notar que não haverá aqui uma única faixa dispensável. Shore embala do princípio ao fim. E, trunfo para nós: muitas destas canções nasceram em Portugal – partilhou o próprio Robin – no mês que passou entre nós, refugiado no mundo rural, com o intuito de criar música. É um episódio que vem ligar a história deste disco a este nosso cantinho europeu, e que muito nos deve honrar.

Ao longo do disco, passeamo-nos por sonoridades distintas, num percurso pautado, não raro, por desvios tonais ou opções de composição menos convencionais. Mas, novidade, a piscar o olho ao rock – talvez pela maior preponderância da bateria e do baixo nos arranjos, mais assíduos e destacados que nos trabalhos anteriores. Continua a ser um álbum folk, é claro – desde logo pela identidade das guitarras acústicas, que Robin Pecknold consegue pôr a respirar – mas mais balanceado, arredondado. Não será totalmente descabido referir que, ao nível da ambiência, encontrei semelhanças com os The War on Drugs. Comparação talvez estranha – as bandas movimentam-se em géneros distintos – mas há alguma familiaridade na maneira como o som se apresenta (espreite-se, a título de exemplo, o início do tema “A Long Way Past the Past”, e qualquer coisa no balanço de “Young Man’s Game”).

Numa abordagem assumidamente maximalista, são múltiplos os momentos em que o álbum se entusiasma. Uma peça importante dessa grandiosidade é providenciada pelo conjunto de metais que sopram vitalidade e calor, e destacaco duas dessas intervenções. “Cradling Mother, Cradling Woman” é um dos momentos mais expansivos de todo o disco, e os metais intervêm de tal maneira que poderiam perfeitamente ter fugido de um disco dos Beirut. E em “Going-To-The-Sun Road” são um berço nostálgico e emocionante que ajudam a construir a progressão da música, e que no término adornam a exímia participação de Tim Bernardes. Sim, o artista brasileiro, fã absoluto dos Fleet Foxes, é protagonista de um momento de singular e ofuscante beleza em Shore – a passagem arrepiante em que a voz de Tim se eleva naquela última nota, interrompida pelos apontamentos arrítmicos e quase jazzísticos dos sopros.

Mas há outros momentos de glória ao longo de Shore. Muitos deles próximas do arranque: em “Sunblind”, tema fortíssimo e envolvente, muito à custa da contagiante e propulsiva melodia do refrão, amparada por um arranjo impecável e inspirador (como resistir ao baixo?); os coros de “Can I Believe You”, que Pecknold montou a partir de quatrocentas contribuições de voluntários no Instagram; os viciantes e saltitantes versos de “Jara”; os apontamentos belíssimos de piano em “Featherweight”…

Há ainda tempo para interlúdios acústicos e despidos. São uma janela para o lado directo e simples da música dos Fleet Foxes. Destaco “I’m Not Your Season”, um tema de melodia desconcertantemente bonita. Distribuídos ao longo do disco, conferem dinâmica a Shore – embora não de uma forma tão radical como em Crack-Up, cujos altos e baixos eram uma montanha russa quase psicadélica, muitas vezes interrompendo a estrutura interna dos temas. Não – este quarto trabalho é mais suave, homogéneo. E talvez seja esse o seu calcanhar de Aquiles: um travo a neutro, uma suavização talvez algo excessiva no momento pivot em que a carreira da banda parecia propulsionar-se para uma identidade progressiva e experimental.

Ainda assim, Shore é banda sonora privilegiada para se ouvir ao ar livre, a sentir o vento na cara, de preferência debaixo de árvores ou de frente para o mar. Ou para, em casa, nos deixarmos transportar para esses lugares onde não somos constrangidos pelas amarras civilizacionais. Um disco feito com cuidado, pensado ao detalhe, bem produzido, competente, e repleto de bonitas passagens musicais. Fica o sonho de que no futuro Robin Pecknold faça jus às palavras que canta na última faixa – “Afraid of the empty / But too safe on the shore” – e se decida a mergulhar nas correntes mais inesperadas deste seu inspirado universo sónico.

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