Sigmund Freud: do consciente ao inconsciente
Sigmund Freud nasceu em Freiberg, na Morávia, hoje Pribor, na República Checa. Este era o mais velho de oito irmãos, todos filhos do segundo casamento do pai. A mãe, 20 anos mais nova do que o pai, tinha uma evidente preferência por Freud, que reconhece:
“Um homem que foi sem dúvida alguma o preferido da sua mãe mantém durante a vida o sentimento de um conquistador e a confiança no êxito que muitas vezes induz à concretização do sucesso.”
Sigmund Freud sobre a preferência de sua mãe.
A família muda-se para Viena, capital da atual Áustria, quando Sigmund tinha quatro anos. Reconhecendo as suas capacidades intelectuais desde cedo, os seus progenitores procuraram apoiá-lo nos estudos, revelando-se um aluno notável. Formou-se em Medicina na Universidade de Viena, em 1881, e desenvolveu trabalhos experimentais nas áreas da biologia e da fisiologia. Paralelamente interessava-se pelos clássicos gregos e latinos e pela literatura europeia. Esta formação humanística teve uma evidente influência na sua obra e no modo como encarava os seres humanos. Ainda lecionou durante algum tempo mas as dificuldades económicas e o facto de ser judeu levaram-no a exercer neurologia numa clínica privada.
Durante cerca de um ano (1885-86), estudou em Paris com o professor Jean Charcot, este que recorria à hipnose para tratar a histeria. Na época, prevalecia a convicção de que a histeria (termo que deriva do grego hystera, que significa útero) era uma perturbação exclusivamente feminina. Esta manifestava-se por um conjunto de sintomas orgânicos, como paralisias, desmaios ou perdas de memória, que não tinham origem no sistema nervoso. São as experiências com Charcot que levam Freud a equacionar a existência do inconsciente, isto é, de uma instância do psiquismo que se desconhece.Esta hipótese é aprofundada com o trabalho que desenvolve com o também médico austríaco Josef Breuer, este que recorria à hipnose como terapia para os sintomas histéricos. Os dois consideraram que a causa das perturbações teria de ser procurada no inconsciente do doente, onde estavam retidas recordações traumáticas. O caráter penoso dessas lembranças reprimidas impedia que as mesmas se pudessem exprimir, manifestando-se, assim, em perturbações orgânicas. Da colaboração conjunta nasce um livro (“Estudos sobre a Histeria”, 1895) e a partilha de uma experiência que será crucial no desenvolvimento das conceções de Freud. Uma doente de Breuer, denominada Anna O. (pseudónimo de Bertha Pappenheim), apresentava várias perturbações desde a morte do seu pai. Durante o sono hipnótico, recordava cenas do seu passado que relacionava com os sintomas presentes. Os técnicos constatam que a verbalização do ocorrido provocava melhorias significativas no estado de Anna, desaparecendo os sintomas durante algum tempo.
Em 1896, Freud abandonou a atividade conjunta com Breuer por considerar que a hipnose não era o método adequado para a cura, pois não se conseguia hipnotizar todos os pacientes e porque os resultados positivos apresentados tinham curta extensão. Para além disso, Breuer não concordava com a interpretação de Freud, este que aduzia que a histeria tinha origem sexual. Sozinho, o austríaco desenvolveria um conjunto de conceções que vão constituir uma teoria sobre o psiquismo humano e uma técnica terapêutica: a psicanálise. Para a elaboração das suas conceções fundamentais, apoiou-se na sua experiência clínica, que lhe forneceu muitos dados recolhidos junto dos seus doentes. Além disso, ao longo de toda a sua vida, desenvolveu uma autoanálise sistemática. Para além de se dedicar à escrita (publicou, em 1900, “A Interpretação dos Sonhos”), dava aulas, consultava os seus doentes e participava em conferências. A sua atividade é fortemente ameaçada sobretudo depois da ocupação da cidade de Viena pelos nazis. Os seus livros são queimados, a sua casa saqueada e os familiares e amigos temem pela sua vida. Durante muito tempo recusou-se a abandonar a cidade, acabando por ceder depois da sua filha Anna ser presa. Foi com ela para Londres, onde morreu em 1939, com 83 anos, depois de um longo sofrimento provocado por um cancro no maxilar.
“Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro.”
Sigmund Freud sobre a vida.
A principal teoria proposta por Sigmund Freud foi a apresentação do psiquismo da mente humana, dividindo-o em duas partes. Importa desde já ter em conta a existência do inconsciente, este que funciona como um repositório dos desejos, das pulsões, das tendências e recalcamentos de um dado ser humano, sendo estes essencialmente de caráter sexual. Neste sentido, a primeira parte é associada ao da parte visível de um icebergue, designando-a como o consciente. Aí, concentram-se as imagens, ideias, recordações e pensamentos acessíveis através de uma simples introspeção. No entanto, é na segunda parte que o trabalho de Freud é marcante, sendo esta precisamente a que se encontra invisível ao olho nu e a componente do icebergue que está submergida. De difícil acesso, este é fortalecido pelo processo de recalcamento, o mesmo que impede que os materiais do inconsciente se tornem conscientes. Numa extensão desta teoria, o psicanalista estrutura o psiquismo em três instâncias, sendo elas o id, o ego e o superego. O id refere-se à zona inconsciente, primitiva e instintiva que o ser humano possui desde a sua nascença e que engloba todo os desejos, instintos e pulsões que não são influenciados por nenhum corpo de cariz moral. É aqui que reside o princípio do prazer e onde, segundo Freud, está reservada a líbido, o estímulo das pulsões sexuais. De seguida, o ego é a zona consciente norteada pelo princípio da realidade que se forma durante o primeiro ano de vida. Este funciona como mediador entre os desejos e prazeres do id e as normas e os valores éticos e morais provenientes do superego, este que provém do contacto com adultos e que se forma entre os três e cinco ano de idade.
Ainda quanto ao processo de recalcamento, o psicanalista constata que grande parte dos conflitos existentes na psique dos seres humanos é de cariz sexual, sendo estes sujeitos à repressão. Desta forma, Freud enumera uma série de estádios psicossexuais nos quais enuncia as possíveis espécies de conflitos e a zona erógena (parte do corpo que causa excitação sexual) de cada um. Começando pelo estádio oral (do nascimento até aos 12/18 meses), este carateriza-se pelo prazer do bebé ao levar objetos à boca e no processo de amamentação, assim como na estimulação corporal. As normas provenientes da sociedade vigente obrigam, contudo, à formação do ego, que vem mitigar a dimensão deste estádio. Aqui, decorre a transição para o estádio anal (12/18 meses até aos 2/3 anos), onde a zona erógena se move para o ânus. A criança obtém prazer quando retém e expulsa as fezes, existindo uma mescla de dor e de prazer na retenção das mesmas. A educação para a higiene demonstra já uma eventual aparição do superego, constituinte que se vai emancipando consoante a criança cresce.
De seguida, chega-se ao estado fálico (3 aos 5/6 anos), sendo a zona erógena a genital. A criança começa a obter prazer através dos seus órgãos sexuais, surgindo aqui um conceito de salutar importância na linha de raciocínio de Freud. Remontando ao episódio da mitologia de Édipo, em que este mata o pai para se casar com a mãe, o europeu conceptualiza o Complexo de Édipo, em que a criança se atrai pelo progenitor do sexo oposto e demonstra animosidade pelo do seu sexo. Aqui, o processo de identificação com o progenitor privilegiado será determinante a maturação do superego, isto é, na adoção de comportamentos, valores e princípios. Este complexo será superado precisamente aquando da consolidação desta dimensão da psique. O quarto estádio é o de latência (dos 5/6 anos até à puberdade), onde é atenuada a atividade sexual e onde ocorre a denominada amnésia infantil. Neste período, seriam reprimidas as experiências que perturbaram a criança no estádio fálico e as relações estabelecidas na escola ganham uma especial relevância na evolução da mesma. Por fim, atinge-se o estádio genital, onde, tal como no estádio fálico, a zona erógena é a genital mas, neste, o prazer é proliferado por todo o corpo. A sexualidade latente no estádio anterior volta a ser ativada e o complexo de Édipo volta a assumir-se com contornos ligeiramente diferentes, agora fora da família. Os pais são encarados de forma mais realista, fazendo-se uma espécie de luto pela imagem que os mesmos tinham em estados precedentes.
“O amor pela mulher rompe os laços coletivos criados pela raça, ergue-se acima das diferenças nacionais e das hierarquias sociais, e, fazendo-o, contribui em grande medida para os progressos da cultura.”
Sigmund Freud sobre o amor
Psicologia Coletiva e Análise do Eu (1921)
No que toca à análise dos sonhos e ao processo de psicanálise, Sigmund Freud é também um inovador e explicita uma metodologia de análise que transcende o processo da hipnose. Na aplicação do seu corpo de competências adquiridas na formação em medicina, o psicanalista põe a tónica nas associações livres, em que incentiva o analisado a expressar tudo o que pensa e sente (numa espécie de stream of consciouness, abordada por outros psicólogos e até autores dos finais do século XIX e início do século XX). Desta forma, Freud deteta resistências, desejos, recalcamentos e recordações passíveis de serem analisadas e associadas, não esquecendo o pensamento mais descabido ou a emoção mais longínqua. Para além disto, é solicitado ao paciente o relato dos seus sonhos, tendo em conta o caráter simbólico que estes possuem, especialmente no que toca à realização que os mesmos reproduzem. Impera dissecar o conteúdo latente dos mesmos, este que passa pelo que lhes está subjacente, desde receios a pretensões, e atribuir-lhes significados. Para que o processo de interpretação seja mais facilitado, Freud suscita uma espécie de transferência de dados quanto aos sentimentos do sujeito nutridos durante a infância, especialmente aqueles em relação aos pais; e procura verificar os lapsos e as brechas deixadas pelo mesmo durante a sua expressão. É nestes erros involuntários que o europeu deteta desejos recalcados que poderiam surgir à tona de forma quotidiana em caso de serem desbloqueados. No fundo, trata-se de uma consulta em que o médico assume o leme da embarcação que pode navegar por águas mais ou menos tumultuosas e cujas ondas devem ser cuidadosamente analisadas antes de enfrentadas e de, eventualmente, superadas.
“As palavras faziam primitivamente parte da magia e nos nossos dias a palavra guarda muito do seu poder de outrora. Com palavras um Homem pode tornar o seu semelhante feliz ou levá-lo ao desespero, e é com ajuda das palavras que o mestre transmite o seu saber aos alunos, que o orador empolga os auditores e determina os seus juízos e decisões.”
Sigmund Freud sobre o poder das palavras.
Introduction à la Psychanalyse, Payot, (1976)
Existem, no entanto, duas questões fulcrais na análise a Sigmund Freud. Em primeiro lugar, a religião. O psicoterapeuta concebia Deus monoteísta como uma necessidade de infância de uma figura robusta e sobrenatural que pudesse inspirar e mostrar o epítome da espécie humana. Em estádios de idade adulta, chega a comparar a fé a uma neurose obsessiva, defendendo que a religião servia como consolo psicológico perante o medo sentido da Natureza e das expressões desta. Desta forma, Freud assinala a sua importância para a sociedade mas não para a verdade, vendo-a também como uma espécie de moderadora entre Eros e Thanatos, forças respetivas da vida e morte. Estas desmascaram o teor da agressividade, com Freud a localizá-la dentro do organismo humano. Pegando na pulsão da morte, considera que é essa que transporta a propensão autodestrutiva e que necessita de ser descarregada. A importância da socialização freudiana é a de precisamente controlar essa força danosa. Quanto a esta temática, a obra “O Futuro de Uma Ilusão” (1927) é a que se destaca, assinalando a falsidade do seu corpo de preceitos.
Em segundo, a crítica feminista. A filósofa existencialista francesa Simone de Beauvoir foi uma das principais dissonantes do psicanalista, apontando a superioridade masculina subjacente às suas teorias. Para além disso, a teoria da Inveja do Pénis, em que reflete sobre a ansiedade sentida pela mulher quando verifica, no último estádio, que não possui um pénis, gerou uma enorme vaga de contestação por autoras como as norte-americanas Kate Millett e Naomi Weisstein. Outra das teorias controversas e associadas à discriminação sexual consiste no Complexo de Castração, este que refere o medo da criança masculina de ser castrada ao se deparar com a falta de um pénis por parte da mãe, considerando que esta o foi. Também divergências ao nível do pensamento foram expressas, nomeadamente por nomes como o filósofo Jean-Paul Sartre quanto ao inconsciente (embora tentasse desenvolver uma psicanálise existencial), Karl Popper, pensador austro-inglês que considerava que todas as teorias científicas eram falsificáveis, questionava a mesma quanto às teorias do psicoterapeuta.
Sigmund Freud listou as três grandes revoluções na forma de perspetivar o ser humano: a primeira quando Nicolau Copérnico refutou o geocentrismo, a segunda quando Charles Darwin comprovou a evolução das espécies a partir de outras tantas e a terceira quando ele próprio descobriu que o inconsciente controla a vida humana, força essa anónima e irreverente. Restringindo o comportamento do ser humano a um automatismo de estímulo-resposta, Freud assinala a importância das pulsões e os conflitos a si inerentes no psíquico do ser humano, para além da proeminência da infância no seu desenvolvimento social e cognitivo. A sua obra, recebida com surpresa dentro da comunidade científica, marcou indelevelmente o futuro do ser humano. Tanto a forma de o conceber como a forma de o tratar sofreram súbitas metamorfoses. Nada escapou, desde a arte até à sociologia, a filosofia, a medicina e a própria antropologia. Desde as ciências mais metódicas até às mais melódicas, todas tremeram com a dimensão da avalanche conceptual de Sigmund Freud. Do consciente ao inconsciente, o psicoterapeuta veio implicitamente ajudar o argumento que garante que é mais o que compreendemos do que aquilo que falta compreender, tanto na formatura como na desenvoltura. Não obstante teorias mais ou menos interrogáveis, as dúvidas escasseiam quando se afirma que Freud foi agente de uma revolução silenciosa. Sem o barulho da voz mas com o dom da escrita, Inconscientemente, Sigmund Freud foi da ciência novidade para fazer da psicologia firme realidade.
“A felicidade é a realização de um desejo pré-histórico da infância. É por isso que a riqueza contribui em tão pequena medida para ela. O dinheiro não é objeto de um desejo infantil.”
Sigmund Freud e a felicidade.