“Silêncio”, de Cédric Orain e Guilherme Gomes: nem sempre as palavras nos salvam
Nos últimos anos parece intensificar-se e multiplicar-se a reflexão cultural sobre o valor do silêncio, numa era em que cada vez mais nos vemos rodeados de estímulos vários, em contextos urbanos (e fora deles) povoados de presenças, paisagens sonoras, ruídos de fundo, palavras (tantas palavras, palavras a mais) e uma aceleração desenfreada rumo, tantas vezes, a lado nenhum. Procuramos o silêncio; mas, não raro, fugimos também dele, da opressão que nos causa e do confronto que nos obriga a fazemos connosco mesmos. A peça a que assistimos no Teatro Nacional D. Maria II no passado sábado, ‘Silêncio‘, apresenta-nos uma visão ansiosa e labiríntica sobre o lugar que esta ausência ocupa nos nossos dias.
Da autoria de Cédric Orain e Guilherme Gomes, o espectáculo foca-se numa série de quadros de narrativas aparentemente desconexas, pintadas a diferentes ritmos, todos em torno desta evidência e inevitabilidade: o silêncio. Os cinco actores desdobram-se numa série de personagens, em passagens fotográficas que evocam circunstâncias do quotidiano com que decerto já nos confrontámos, a partir de uma cenografia simples mas evocativa dos lugares que são os de todos: a nossa casa, o nosso local de trabalho, ou o refúgio secreto longe da cidade onde julgamos ter a oportunidade de nos libertarmos da civilização por algumas horas.
A simplicidade dos cenários e a sua discreta mutabilidade contrastam com os conflitos. A peça foca particularmente esse desencontro de vontades, a assimetria emocional, a desconexão entre os presentes e a impossibilidade de a desbloquear. Neste jogo, nem sempre a narrativa avança por meio de palavras e gestos: o lugar do silêncio é também ele relevante, e fala alto. Também as breves passagens musicais de Nils Frahm evocam essa espacialidade musical que permeia a realidade, ora lânguida ora impetuosamente.
A peça – co-produção entre o TNDMII, a Maison de la Culture d’Amiens, o grupo Le phénix e o CRETA – decorre em português e francês, obrigando o espectador a saltitar entre diferentes linguagens, obstáculo adicional à comunicação já de si difícil nos quadros conflituais em cena. Mas o espectáculo é dotado, acima de tudo, de uma acessibilidade próxima; compreendemos as emoções em causa, já as experimentámos directa ou indirectamente, e sentimo-nos solidários com cada produtor e receptor do silêncio, consoante o caso.
Destaque para a performance dos cinco actores (Guilherme Gomes, João Lagarto, Marcello Urgeghe, Tânia Alves e Teresa Coutinho), ao encarnarem (em figurinos simples mas dotados de uma sobriedade próxima) papéis de natureza distinta ao longo da quase hora e meia de espectáculo, convocando emoções e transmitindo-as com uma naturalidade e verdade assombrosas. Fica latente, ao longo da sua actuação, uma tensão ora mais ora menos explícita, transmitida à plateia por osmose, mesmo quando através de um pano de rede semi-transparente que acentua a distância que também os silêncios podem determinar; mas pintada também a momentos de humor, escape dessa pressão e/ou veículo de expressão da mesma.
‘Silêncio‘, que esteve em cena na Sala Estúdio do TNDMII entre 29 de Setembro e 10 de Outubro, com lotação esgotada em muitas das suas sessões, monta um mosaico de personagens e situações que nos acompanham quando saímos do teatro. É no quadro da nossa própria vida que somos convidados agora a reflectir sobre o peso e a intenção que colocamos nas nossas palavras e na sua ausência. Reféns e herdeiros das suspensões em cena, dos conflitos sem resolução e das respostas inexistentes, partimos para a vida com a inquietação que procuramos nesta nobre arte do palco.