“Sinopse de Amor e Guerra”: a luz de Afonso Cruz na negrura dos dias

por Mário Rufino,    25 Janeiro, 2022
“Sinopse de Amor e Guerra”: a luz de Afonso Cruz na negrura dos dias
Capa do livro

A extensa produção literária de Afonso Cruz (Figueira da Foz, 1971) criou um local intangível onde predomina a luz e a possibilidade do bem. Tem sido assim ao longo dos seus livros e isso pode-se verificar em “Sinopse de Amor e Guerra” (Companhia das Letras), segundo episódio da série de romances “Geografias”.

Afonso Cruz conquistou um lugar próprio na literatura portuguesa contemporânea com a limpidez e o optimismo da sua prosa. É um lugar onde se cruzam filosofias orientais e ocidentais, onde habitam personagens ficcionais e figuras históricas.

Há capacidade em chegar ao leitor através das palavras e disponibilidade para passar esse conhecimento com frequentes idas a escolas e a festivais literários. Não é surpreendente que o autor se tenha instalado no carinho dos leitores e na aceitação da crítica literária. “Sinopse de Amor e Guerra” é mais um sintoma de conforto em que se sente nesse estatuto. Talvez esteja até demasiado confortável.

O sucessor de “Princípio de Karenina”, situado na Cochinchina, mantém os traços característicos da prosa de Afonso Cruz: rápida, com apetência pelo aforismo, filosófica. Desta vez, o autor viajou do sudeste asiático até Berlim e por lá ficou desde os anos imediatamente anteriores ao muro de Berlim até pouco depois da construção da fronteira que viria a dividir território e vidas.
Theobald Thomas e Bluma Janek conhecem-se desde a nascença e as suas histórias de vida influenciam-se. Entre aproximações e afastamentos, percebem que estão destinados um ao outro.
Se no princípio foi referida a possibilidade do bem na escrita de Afonso Cruz, isso não significa a ausência do mal.
O binómio existe e, tal como em Theobald e Bluma, a sua dinâmica depende da interacção entre as partes, com afastamentos e aproximações, causas e consequências. Afonso Cruz tece assim uma trama com princípios reais, históricos e individuais, para, a partir daí, enovelar com ficção e escrever mais um bom romance.

O seu mais recente livro mantém a luminosidade do autor, como um candeeiro a iluminar o olhar dos leitores, e respiração muito próxima do livro anterior. Há estabilidade no discurso com espaço para diferentes recursos estilísticos e estratégias narrativas. Se a inserção de narrações paralelas, com o autor a assumir o nome próprio e experiências próprias na narrativa, funciona perfeitamente, a tentativa de intercalar diálogos incompletos — uma personagem a interromper outra ou a falar em simultâneo — não é tão bem-sucedida.

Existe uma ideia generalizada entre leitores e críticos literários injusta para o autor. Esta ideia prende-se com uma comparação entre os romances depois de “Para Onde Vão os Guarda-Chuvas” e este romance. Reconhece-se o valor de cada livro de Afonso Cruz e o leitor enleva-se nas ideias luminosas do autor, mas fica-se a pensar que, por muito bom que seja, não chega à excelência de “Para Onde Vãos os Guarda-Chuvas”. Este livro continua a ser, para o melhor e para o pior, “o” romance de Afonso Cruz.

Talvez seja um peso que o autor não deva suportar. Acaba por fazer sombra à produção ficcional posterior. É que o leitor percebeu até onde consegue ir o autor — e consegue ir muito longe — e aceite o que não alcança “Para Onde Vão os Guarda-Chuvas” com carinho, satisfação, mas alguma resistência por pensar que ainda não foi desta que lá chegou novamente.

“Sinopse de Amor e Guerra” é mais um raio de luz a abrir caminho na negrura dos dias. Tem a qualidade “Afonso Cruz” e é bem-vindo às mãos dos leitores.

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