Slow J não está sozinho
Quando falámos em Dezembro, a propósito do lançamento de Afro Fado, Slow J disse-nos que o concerto na MEO Arena seria “uma arruaça, uma celebração” de um trabalho longo e duro. Na altura, estava previsto haver um só concerto, a 8 de Março, mas a incrível recepção do disco e alguma (leia-se muita) frustração de quem não conseguiu bilhete, levou a que fosse aberta outra data, no dia anterior, que esgotou igualmente. Restava-nos esperar pela arruaça prometida, e pelo que vimos no primeiro dos dois concertos, a promessa foi mais do que cumprida.
A primeira parte do espectáculo foi assegurada por EU.CLIDES, que não teve a tarefa facilitada por uma sala cuja acústica se sabe difícil e um público que chegava e deambulava entre o melhor sítio para ver o concerto de Slow J e a banca de merchandising. Ainda assim, é tecnicamente impossível ignorar a voz doce, a mestria e a delicadeza das canções de EU.CLIDES. Um mês depois do concerto esgotadíssimo no Tivoli, sobre o qual também escrevemos, esperamos que, mesmo com o frenesim que se sentia na sala, o artista tenha suscitado a atenção de quem não conhecia e encantado, ainda mais, aqueles que não conseguem tirar o álbum de estreia — Declive, lançado em 2023 — da playlist.
Slow J entrou em palco poucos minutos depois das 21h30, ao som de uma ovação que contrariou grandemente o verso “ninguém manda um tuga abaixo como o próprio tuga”, da canção “Pirâmide”. Nas mais de duas horas de espectáculo, Slow J, os músicos, os convidados e o público foram um, a cantar a uma só voz, a viver a prometida celebração.
Começando com “Tata”, o mote estava lançado para Slow J “só dizer a verdade” como foi ensinado. Passámos por “Where U @” e, daí, para o primeiro convidado da noite, Papillon, para juntos entoarem “FAM”, do disco You Are Forgiven. “Casa eu encontro onde param os meus bros” — e naquela casa pararam muitos. Duas canções depois, entraram os gémeos Goias, que co-produziram Afro Fado, para “Ultimamente”, uma das canções mais pessoais do disco. Em “Às vezes”, do primeiro LP, Slow J relembra-nos, mais uma vez, que o sentimento de tristeza, de solidão e de coração partido parece tão individual mas é, no seu âmago, o sentimento mais comum a cada uma das pessoas presentes na MEO Arena, no metro, na rua, no autocarro.
“O lado negro antes do vale do fracasso extremo” é algo presente na vida de muitos e tem tido efeitos na forma como Slow J vive nos últimos anos. Na supracitada entrevista que nos deu, referiu que por vezes troca “mensagens seja com o Ivandro seja com o T-Rex, para saber como é que as coisas estão a correr, se a malta está bem. Quando são os mais novos para saber se estão a fazer exercícios, se estão a cuidar deles”. E terá sido, provavelmente, numa troca de mensagens que Slow J convidou Ivandro a subir ao palco para “Imagina”, mais uma vez integralmente entoada pelo público. Já os cuidados com os outros, com o próximo, fizeram com que Slow J interrompesse o concerto 2 vezes, para que alguém na assistência fosse socorrido. “Olhar uns pelos outros”, referiu, depois de interromper a intensíssima “Lágrimas”.
Este interlúdio mais intimista prosseguiu com “Sereia” para desembocar num dos muitos momentos altos da noite, que foi a subida ao palco de Richie Campbell, para “Water”. Slow J destaca que se há vários artistas portugueses a esgotar a MEO Arena foi porque Richie Campbell (vá, exceptuando o Tony Carreira) foi o primeiro que arriscou, foi o primeiro que o fez, foi o primeiro que mostrou aos outros que tal era possível.
Entrávamos quase na recta final quando “Nascidos & Criados” levou Teresa Salgueiro ao palco. Há conjugações menos invulgares — Teresa Salgueiro, dona de uma voz mítica, porventura clássica, com Slow J, ícone de uma geração que cresceu a ouvi-la. Infelizmente, não conseguimos ouvi-la nas melhores condições, mas o conforto de ter a Teresa Salgueiro ali foi uníssono. Momentos depois, ouvimos Sara Tavares, rainha da música portuguesa, entretanto desaparecida. Terá sido esse o momento mais emocionante da noite e aquele que fez com que água se acumulasse nos nossos olhos.
Foi com a sequência “Serenata” — com Slow J “sozinho” em palco —, “Origami” e “3,14” que o concerto findou. Para este final, GSon aparece como pedra basilar de um espectáculo que teve quase tudo para ser perfeito. A humildade, a certeza de que “somos feitos de incertezas e carne”, o sentimento de união, de colectivo, independentemente da cor da pele, do credo, da nacionalidade — e aqui Slow J apelou ao voto consciente — e de não estarmos sozinhos, foram o que nos acalentaram o corpo e a alma numa noite que só foi fria fora das paredes da MEO Arena. A festa continua hoje.
Além de Papillon, Ivandro, GSon, Teresa Salgueiro, os gémeos Goias e Richie Campbell, estiveram também em palco João Caetano, Hugo Lobo, Diogo Seis, Djodje Almeida e Rui Poço.
O espectáculo como um todo, a disposição do palco, o desenho de luzes e ecrãs indicaram o extremo trabalho e profissionalismo de todos os envolvidos. Lamentamos, mais uma vez, que a acústica do espaço tenha tido algum efeito negativo numa experiência que tudo teve para ser inesquecível.