Slowdive em Lisboa: crónica de uma epifania
A dez metros do palco, sensivelmente ao centro, de pé, com uma mochila às costas. No meio de centenas de pessoas de casacos vestidos ou à cintura. Dentro de um antigo armazém na zona industrial de Marvila, junto aos terminais de contentores. Na camionete, a caminho desse lugar, vejo pela primeira vez na vida um carro a ser erguido por uma grua, com aquela ligeireza que os olhos captam bem melhor que um ecrã. Sem música nos ouvidos, o que é raro – a escutar o motor acelerado, e com atenção ao exterior para saber onde sair. Foi a dez metros do palco, eu estava ligeiramente chegado ao lado esquerdo mas ainda centrado, havia de tirar a mochila das costas mais tarde. Era um no meio de muitos. Foi ali que aconteceu.
Há um par de anos, dois músicos, no espaço de alguns meses, cantaram poemas absolutamente contraditórios e complementares. Num bamboleante tema, Chance The Rapper afirmou: music is all we got. Já num registo mais devastador, James Blake transmitiu: music can’t be everything. São duas frases que me têm acompanhado desde essa altura, em confronto, como anjinho e diabinho em cada um dos ombros, emaranhando-se e confundindo-se. Ora se impõe uma ora a outra, conforme o estado de espírito. Mas ali, numa periferia operária de Lisboa, mais ou menos a quinze passos do palco, na sétima ou oitava fila, de pé, com cabeças à frente dos olhos, entendi da centésima maneira diferente que a música é tudo o que temos e que não pode ser tudo.
Os Slowdive apresentaram-se como são: humanos, gente normal, que vive de guitarras, acordes, batidas e performances vocais – à base de repetições harmónicas, eco e reverberação. Correm o mundo de cidade em cidade, a fazerem aquilo que sabem e aquilo que gostam. Nós estamos entre os que saímos de casa para os ver e ouvir. Porque música como a dos Slowdive, não podendo ser tudo e sendo tudo o que temos, mexe connosco. E nós procuramos essa mexida – é um valor para nós. Felizmente.
A música é uma arte absolutamente misteriosa, uma ciência por decifrar. Como é que no jogo das guitarras, naquele pormenor mais agudo que entra a seguir a determinado refrão, numa linha de baixo, numa batida inesperada que surpreende o compasso – como é que nesses lugares efémeros de uma propagação sonora, descobrimos tantas coisas. Tantas coisas. Um manancial de propostas, ideias, revelações – sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre limiares da verdade. Que espécie de veículo mecânico é este – a música – que nos convoca a viagens de sentido tão amplas?
Eu não tenho grande história com os Slowdive. Descobri o Just For a Day no inverno de 2016, ouvi o homónimo do ano passado com regularidade, e só há um mês decidi finalmente partir para o lendário Souvlaki. Adiei-o como quem guarda a melhor parte para o fim. Nos seus recantos descobri resquícios de emoções muito profundas. Em ‘Here She Comes’, eriçaram-se-me os cabelos em audições consecutivas; na ‘40 Days’ percebi desenharem-se caretas nas minhas feições e contorcerem-se-me as mãos. São reacções físicas que espelham de forma imperfeita o que vai dentro, e não alcança meio de ser partilhado por palavras. Este labirinto indecifrável, que não tenho sequer a pretensão de dar a ler, é a causa da minha partilha. Não podendo transcrevê-lo, quero cuspi-lo.
Faço-o porque ontem à noite voltei a testemunhar que as camadas de som, as vibrações sonhadoras e ecoantes, o próprio volume, as conjugações tonais, mexem connosco. Berço e cova, lugar de criação e transformação – a música é tudo isto. A música assim. É difícil conceber de que maneira virá a ser explicada no futuro, por meio de fórmulas matemáticas, tal expressão de beleza; mas como também acredito na matemática e reconheço nas equações uma linguagem compreensível – e na senda do pseudónimo de Pessoa que confessava que O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo – não seria inverosímil que tal viesse a acontecer.
Na lenta progressão inicial de ‘Slomo’, que nos ofereceu tempo para digerirmos as duas notas de guitarra, alternadas, sob camadas rítmicas absorventes; na ‘Star Roving’, propulsão sem freios; na construção progressiva de ‘Avalyn’, alucinante; na ‘Souvlaki Space Station’, a tal que me fez tirar de vez a mochila das costas, para poder aliviar a gravidade; na ‘Alison’, em que já não temos onde nos agarrar, e em que percebemos que a vantagem de ouvirmos os álbuns nos headphones, em contexto privado, é termos espaço para correr, nos atirarmos para o lado, ou abrir os braços completamente.
Na bonita homenagem a Syd Barrett, num cover que de simples evolui para dimensões elevadas, em crescendos e sequências de acordes que me conquistaram. Na frágil, despida e dolorosa ‘Dagger’, pérola a que nunca tinha dado tanto valor como ontem à noite – talvez porque debaixo de tanto som, quase com os ouvidos a tinir, a passagem “the world is full of noise (…) / I thought I heard you whisper” torna-se muito mais tangível. Na ‘40 Days’ já não havia muito a fazer, restavam poucas angústias por derrubar. Com um sorriso parvo na cara, abandono a sala, procurando nos restantes rostos expressões que denunciem descobertas semelhantes à minha. Vejo caras felizes, olhares entusiasmados, mas é-me impossível saber mais que isso.
A manhã não nos revelará iguais, na medida em que tivermos sido permeáveis às frequências. Que bonito é termos tantas oportunidades de recomeçar. Ontem a música propôs-me estas coisas e mais algumas, ora com mais ênfase ora com mais discrição. A estas palavras, dêem o desconto da ressaca de um grande concerto. Aventurem-se e percam-se nos acordes de um álbum ou de um concerto ao vivo deste calibre. Vão dar por vocês muito longe, à procura de horizontes ainda mais longínquos.