Sónar Lisboa: uma experiência de excelência para os amantes de música
Foi no passado fim-de-semana que o reconhecido Sónar, festival de música, criatividade e tecnologia originário de Barcelona, se estreou na capital portuguesa, depois de itinerâncias por cidades como Tóquio, São Paulo ou Buenos Aires. Como um dos membros dos Polo & Pan, Paul Armand-Delille, disse durante o seu concerto, Lisboa parece ser o sítio para se estar neste momento. A verdade é que a cidade tem sido realmente tanto o foco como a origem de cada vez mais projectos entusiasmantes, particularmente no que toca à cultura. Parece então lógico que a produção do Sónar tenha escolhido Lisboa para a primeira edição pós-pandémica, numa edição bem-sucedida que já resultou na confirmação de um regresso em 2023.
Apesar de a componente Sónar+D, dedicada às tecnologias criativas, ter levado ao Hub Criativo do Beato conferências sobre, entre muitos temas, sustentabilidade, direitos humanos ou inteligência artificial, exposições multidisciplinares e espectáculos audiovisuais, esta reportagem incidirá apenas sobre a componente musical do festival, largamente focada na música electrónica. Ao longo dos dias 8, 9 e 10 de Abril, o Sónar levou mais de 70 actuações a três espaços da cidade: o Pavilhão Carlos Lopes, o Centro de Congressos de Lisboa e o Coliseu dos Recreios.
No primeiro dia, ficou patente a interseccionalidade e o vanguardismo nos quais o festival se foca, através de um alinhamento diverso, equilibrado e que representa a música do presente e do futuro.
Começámos a noite com o carismático e irrepetível Thundercat, que nos trouxe o seu funk acelerado e irrequieto. As suas melodias são tão cerebrais e metódicas que não deveriam ser tão funky, mas as linhas do seu imponente baixo de seis cordas são-no, inegavelmente. O set focou-se principalmente no mais recente It Is What It Is, das quais se destacou a alongada ode “I Love Louis Cole”, um dos principais exemplos do estilo deliciosamente perverso que este herdeiro dos Funkadelic inventa. Ao vivo, Thundercat tende a vaguear por solos longos e difíceis de descortinar, mas esta actuação foi das mais focadas do artista, que, para além da qualidade técnica que demonstrou, conquistou ainda pela genuína simpatia.
De seguida, Nídia e, mais tarde, DJ Marfox demonstraram ao público largamente estrangeiro os sons da Editora Príncipe, que em 2022 celebra 10 anos de partilha da cena musical de Lisboa e seus subúrbios. Esta é música normalmente informada por estilos de música africanos e electrónica mais extrema, numa combinação que não poderia ser mais adequada aos tempos presentes. Nídia apostou na intensidade, com as suas batidas dominantes e baixos possantes. Esta é música que ressoa dentro de nós e nos impele a dançar quase sem limites físicos. Nesse aspecto, impressionou mais que Marfox, que animou o público muito bem composto com batidas mais constantes, mas não menos divertidas.
Ambos os sets tiveram uma carga política intensa, pela imagética projectada nos ecrãs com uma intensidade de cores e temas que aludiam ao colonialismo português e suas consequências. Marfox, olhando para fora de Portugal, ainda instou o público a soltar um grito de revolta contra Putin. Numa época em que o público normalmente busca a música clubbing como um escape ou uma alienação do mundo exterior, as mensagens passadas desta forma acabam por ter ainda mais impacto.
Pelo meio, Arca fez uma mistura similar em termos musicais. No entanto, a artista venezuelana aliou noise, drone e música industrial a outros estilos urbanos, como o reggaeton, o hip hop ou o hyperpop, fazendo sucesso com a bastante presente e vocal faixa LGBTQ+ presente na audiência. Por entre momentos musicais mais abstractos, muito fumo de palco e bangers que duravam pouco mais de um minuto, Alejandra Ghersi foi colocando algumas das suas próprias canções de estúdio, como “KLK” ou “Rakata”, para poder dançar e cantar junto ao público, deleitado pela cercania a uma das artistas e produtoras mais reputadas da música contemporânea. Foi um set ao vivo disperso mas rico e com alguns momentos verdadeiramente transcendentes, uma verdadeira montra da direcção que a música está a tomar.
Logo à partida, outro dos factores que distinguiu este festival de tantos outros foi a atenção redobrada ao som. Foi no Centro de Congressos de Lisboa, espaço cujas qualidades acústicas não são renomeadas, que assistimos a excelentes sets do veterano Richie Hawtin (em paralelo com Héctor Oaks) e de uma das mais recentes sensações do techno, Charlotte de Witte. As actuações foram destrutivas no melhor sentido possível, com uma qualidade de som límpida e sem distorção ou feedback, cortesia de um sistema desenhado por Johannes Kraemer.
O segundo dia começou logo à tarde, na modalidade Sónar by Day, tanto no interior como no exterior do Pavilhão Carlos Lopes. Lá fora, apanhámos um pouco do animado set da editora lisboeta Percebes. Foi muito bom ver que a cena local esteve bem representada no festival, não resultando numa mera importação de artistas estrangeiros para inglês ver.
Dentro do pavilhão, começava o DJ set de The Blaze. O duo francês atraiu um enorme público, ansioso por ouvir o seu electropop dançável, com uns laivos relaxantes reminescentes de artistas como Bonobo ou Tycho. Os primos Guillaume e Jonathan Alric, vistos de longe, pareciam estar unidos pelas mãos, pela forma como se agarravam à mesa de mistura. Este intimismo entre ambos imprime uma carga emocional às suas canções que parece tocar grande parte do público, mas o set acabou por se tornar mais interessante à medida que se aproximava do final e se tornava cada vez mais intenso, fazendo lembrar o French touch e um dos seus grandes expoentes, os Daft Punk. O clímax perfeito fez-se com “Time to Dance”, a épica e efusiva canção dos The Shoes, outro duo francês.
Colocado entre esta descarga de energia e aquela que se seguiu com Honey Dijon, o produtor equatoriano Nicola Cruz teve alguma dificuldade em manter a energia, até porque não é necessariamente isso que a sua música pretende fazer. Ainda assim, o live que fez incluiu muito mais techno do que aquilo que é o seu apanágio de cumbia e outros estilos sul-americanos misturados com música electrónica. Esses chegaram mais no final do set, com um desacelerar do ritmo que sensualizou a atmosfera e só pecou por tardio. Antes disso, ouvimos aquela que tem sido a nova direcção do artista, pontuada por colaborações com artistas brasileiros, como é o caso da mais recente “Vai Sentir”.
Ao longo dos diferentes sets do festival, foi fascinante notar a marca sonora de cada DJ e artista. Por exemplo, a de Nicola é um baque que lembra bongós e outros membranofones, varridos por uma torrente de sintetizadores que fluem como um rio, por mais pretensiosa ou faux-orgânica que a descrição possa parecer.
Depois, apesar da energia do house infundido de breakbeat e garage de India Jordan e das elevadas octanas dos sets disco e house de Honey Dijon, o alinhamento do Coliseu dos Recreios clamou mais forte. Tendo perdido a ansiada actuação de Leon Vynehall, começamos por assistir a uma tímida demonstração de rRoxymore, francesa radicada em Berlim que ia criando paisagens sonoras com recurso a moduladores, mas faltou-lhe a energia que aquela hora da noite requeria. Noutro contexto, a sua música cerebral, quase a roçar o IDM, fará certamente mais sentido.
Para desenferrujar novamente os ossos, veio o supra-sumo Sam Shepherd, mais conhecido como Floating Points. Acabado de lançar dois novos singles que mais uma vez redefinem a sua própria carreira, Sam inclinou-se principalmente para esta nova sonoridade, um techno escorregadio e saltitão que já havia explorado em “LesAlpx”, do fabuloso Crush. Onde antes havia pegado no jazz e música ambiente, pega agora no garage ou jungle tão característicos da cultura underground do Reino Unido, para um set altamente satisfatório e energético que fez vibrar o chão do Coliseu, espoletando uma onda de energia que percorria o corpo de baixo para cima, enriquecendo a experiência de dança.
O mote foi seguido pelos Bicep, duo da Irlanda do Norte baseado em Londres, cujas batidas mecânicas, também inspiradas pelo breakbeat, são aliadas a melodias emotivas e um espectáculo visual colorido e impressionante. O público amontoou-se para assistir às canções do altamente celebrado álbum lançado em 2021, Isles, como foi o caso de “Apricots” ou “Atlas”, ovacionando-os e gerando uma experiência comunal que quase apagou os últimos dois anos de falta da efusão que é assistir a concertos ao vivo.
Para o terceiro e último dia de festival, a energia já não era tanta, mas a programação do Sónar não deu descanso. Nesse dia, os concertos decorreram apenas no Pavilhão Carlos Lopes, espaço com uma localização privilegiada e boa organização espacial, deixando-nos com vontade de assistir a mais espectáculos nesse local.
Começámos com EU.CLIDES, artista cabo-verdiano radicado em Portugal que mais recentemente apareceu no single de Branko, “Tempo Torto”. A sua música alia ritmos africanos à guitarra suavemente dedilhada e uma sensibilidade de bedroom pop adequada à geração Z, sendo tudo isto auxiliado pela voz aveludada de EU.CLIDES. Ocasionalmente lembra-nos da música da sua antiga colega de digressão, Mayra Andrade, como no caso da maravilhosa “Tubarão-Azul”. Sem dúvida, é um nome a ter em consideração nos próximos anos.
Logo a seguir, um set que demonstra a prata da casa une Moullinex e Xinobi, facilmente dois dos nomes mais influentes da música clubbing feita em Portugal actualmente. Sem medo de grandes emoções, os produtores implantam os drops e melodias na altura certa, mesmo que percam algum fôlego nas transições entre faixas. Reconhecemos pelo meio a mais recente faixa co-criada pelos dois, “Imaginary Numbers”, pontuada por sintetizadores atmosféricos e um ritmo pulsante que a fazem funcionar bem tanto em contexto de discoteca como para ouvir em casa. Para a despedida, um remix do clássico “Sempre Que o Amor Me Quiser” deixa o público e os artistas embevecidos, que abandonam o palco com grandes demonstrações de gratidão.
A música electrónica é uma experiência comunitária, não só para o público como para os artistas. Isto esteve bem patente na programação do festival, que ou uniu artistas para actuações conjuntas ou deu destaque a duos. Um dos últimos grandes nomes do festival foi o de Polo & Pan, um outro duo francês, que estava claramente emocionado pelo seu primeiro concerto em Portugal. Apesar do formato live, as músicas não fugiram do molde de estúdio — e ainda bem, porque não vale a pena tentar melhorar uma canção como “Ani Kuni”. Baseada num cântico nativo-americano, une vocais divertidos de acompanhar, uma batida compulsivamente dançável e uma melodia mística numa embalagem pop deliciosa. Destacamos esta por preferência pessoal, mas qualquer uma das outras foi um bom veículo para o concerto em que os artistas tiveram melhor controlo sobre o público. Ajuda que o espectáculo visual também tenha sido extremamente apelativo e que o duo seja carismático.
A partir daí, a noite foi-se concluindo com DJ sets em crescendo. Jayda G fez a sua mistura de house e disco com muita classe e sofisticação, criando uma experiência de dança agradável mesmo sem grandes efusões. O mesmo não se pode dizer de Overmono, o duo britânico que se move pelos mesmos meios do garage e 2-step (tanto que incluíram “Vocoder”, um dos novos singles de Floating Points, no seu alinhamento), que assumiram o repto de energizar o público que gastava os seus últimos cartuchos. Para finalizar, o set conjunto de Violet e BLEID fechou o festival numa nota apocalíptica e intensa, como se o mundo fosse acabar no final do Sónar.
Apesar de alguns detalhes a ser trabalhados (o sistema de pulseiras recarregáveis, copos recicláveis, preços elevados, falta de áreas para sentar), o Sónar Lisboa assumiu-se como uma experiência de excelência para quem quer ouvir a melhor música do momento, reflectindo o ambiente ebuliente que se vive em Lisboa. O festival soube adaptar-se à cidade que o recebeu, numa simbiose que reflecte o benefício da colaboração internacional e do intercâmbio de conceitos que nos permitam viver novas e cada vez melhores experiências culturais.