Super Bock Super Rock (dia 1): do Meco ao Parque das Nações em tempo record
Após estes dias de insegurança devido à vaga de incêndios que deflagram pelo nosso país, o festival Super Bock Super Rock viu o seu regresso pós-pandémico ao Meco adiado devido ao elevado risco que constituía fazer o evento na Herdade do Cabeço da Flauta, casa do festival entre 2010 e 2014 e, posteriormente, em 2019. Numa ginástica logística impressionante, a organização foi capaz de relocalizar o evento para o Parque das Nações, onde decorreu entre 2015 e 2018. Tudo isto num esforço hercúleo feito ao longo de dois dias.
Antes de seguir com a recensão deste regresso do Super Bock Super Rock, há que deixar uma nota de admiração pelo empenho em manter o festival para todos aqueles que aguardavam há mais de dois anos. Empenho esse que não passou despercebido nos agradecimentos de alguns dos artistas.
Como se saiu o festival neste primeiro dia? Bom, houve algumas falhas a nível de organização, nomeadamente alguma falta de comunicação, informação ou sinalização no recinto, mas são perfeitamente expectáveis e compreensíveis, tanto que nem as voltaremos a abordar ao longo deste artigo. Em vez disso, passemos directamente para o que levou o público ao Parque das Nações: a música.
A nossa recepção foi feita ao som do Conjunto Cuca Monga. O grupo que reúne diversos músicos da editora nacional apresentou-se no palco exterior em tons de bege e castanho-claro, com a intenção de transmitir ao público o bem-estar que sentem quando estão em conjunto. A palavra mais ouvida foi “amigo” e a sensação foi a de camaradagem e boa companhia, ideal para o final de tarde ainda quente que agraciava os “festivaleiros do alcatrão”. Do início a puxar ao reggae, passámos para o pop rock jovial que caracteriza muitos dos projectos que compõem o Conjunto Cuca Monga. Trocando de instrumentos constantemente, os músicos criaram um espectáculo dinâmico e variado que demonstra que a soma das partes é maior que cada uma delas.
Ouvimos “Planície”, de Luís Severo (ausente do concerto), na voz de Tomás Wallenstein, dos Capitão Fausto; Rapaz Ego faz uma perninha em espanhol com a agradável “Tan Suave”, remetendo ao seu EP Rapaz Ego Canta Durante la Siesta; mas também se ouvem canções do único álbum do projecto, lançado há dois anos. O público, inicialmente tímido e esparso, foi engrossando ao longo do espectáculo, celebrando particularmente a animada “Sem Razão” e o maior sucesso do grupo, “Tou na Moda”.
Já no interior, na Sala Tejo, que recebeu o palco EDP/Somersby, assistimos a um dos concertos com maior taxa de retenção do primeiro dia. Pouca gente parecia conhecer a música das Los Bitchos, mas isso não importa quando o som é tão animado e pujante. É caracterizado por guitarras desérticas e quentes, com distorção que parece devida ao calor, e por ritmos dançáveis. O som retro e roqueiro da banda viaja pelo globo e mistura várias influências: cumbia, chicha (variação peruana psicadélica da cumbia), rock psicadélico turco (lembrando uns Kit Sebastian com mais ginga), surf rock, entre outros; sendo um reflexo da diversidade da banda, cujos membros vêm de lugares tão díspares como o Uruguai, a Austrália, a Suécia e a Turquia.
Para quem conhece o primeiro álbum do grupo, Let the Festivities Begin! (produzido por Alex Kapranos, dos Franz Ferdinand), o concerto não foi particularmente surpreendente, sendo uma réplica do que está em disco. Isto inclui o seu espírito festeiro, tornando o concerto das Los Bitchos nisso mesmo: uma festa. Os membros iam partilhando uma garrafa de tequila, celebrando as reacções efusivas do público. Foi assim na áspera “Lindsay Goes to Mykonos”, dedicada a Lindsay Lohan, na cavalgante “Tropico” e na psicadélica “Pista (Fresh Start)”. Foi um concerto entusiasmante, que materializou uma das coisas mais divertidas dos festivais de música: descobrir música nova.
Já no palco maior, dentro da Altice Arena, a quantidade de público não foi muita para receber os Metronomy. Quatro meses depois do concerto que deram no Coliseu dos Recreios, a fórmula não mudou, simplesmente foi mais focada nos grandes sucessos e com menos desvios para os fãs acérrimos — que, de resto, não estavam em massa no Super Bock Super Rock. Ainda assim, a música da banda britânica é sempre capaz de instigar uma micro-festa onde quer que se toque. Como se pode não dançar ao som de “Salted Caramel Ice Cream” ou da incontornável “The Look”? Ainda assim, a música que mais nos impressionou foi o novo hit de Small World, o último álbum da banda, “Right on Time”. O seu ritmo gingão e guitarra soalheira poderiam preencher todo o concerto e ficaríamos contentes.
Antes de outro dos maiores concertos da noite, espreitámos o DJ set dos Jungle, de volta a Lisboa uma semana depois do concerto no NOS Alive. O set do duo britânico foi o mais fugidio de todo o alinhamento, tendo mudado de horário e local duas vezes na noite do festival. Apesar de já ser de noite, a vibe foi a de uma festa de pôr-do-sol, passando por remixes pejados de funk de “Keep Moving” ou “Loud Places”, de Jamie xx. Foi divertido, mas não particularmente interessante. Preferimos ver J e T em formato de banda, onde o seu carisma tem mais espaço para brilhar.
Ao chegarmos ao concerto de Leon Bridges, tomamos um tempo para analisar mentalmente o alinhamento do dia. Chegamos à conclusão de que este festival normalmente tem o condão de não ser particularmente coeso em termos de cartaz. Este ano, o grosso dos nomes é um dos conjuntos mais coerentes da história recente do festival, mas, ainda assim, a escolha de ter a calorosa soul de Leon Bridges a abrir para o rap fogoso de ASAP Rocky é curiosa. Bridges é um dos novos patronos da soul, catapultado para a fama pela sua reinterpretação fiel da soul e pela inclusão de alguns dos seus temas em séries como Big Little Lies.
Dono de uma voz aveludada que por vezes se perdia no eco da colossal sala, apresentou-se com um fato branco reminescente de performances clássicas dos anos 60 e 70, ocasionalmente tocando guitarra e conjurando uma tranquilidade pachorrenta inspirada pelo sol do Texas. Já que no concerto dos Khruangbin no NOS Primavera Sound não tivemos direito a ouvir “Texas Sun”, Leon Bridges presenteou-nos com a sua interpretação da canção partilhada. Ainda assim, o momento mais especial foi o esparso dueto de “River”, uma das mais belas e reconhecidas canções do artista, aqui sem os laivos gospel que apresenta em disco. Foi óptimo para poupar energia para o que se seguiria.
Ainda antes de ASAP Rocky, a libertação de energia veio pelas mãos dos britânicos Sports Team, mais uns representantes de um novo post-punk da ilha, já mais com o pé na agitação e amargor de um garage rock ocasionalmente reminescente dos The Libertines. Alex Rice, o vocalista, passou as duas primeiras canções a que assistimos a fazer moche no meio do público e até tinha a ambição de subir à varanda que sobreolhava a Sala Tejo, mas rapidamente se deixou de ideias. A acérbica “Camel Crew” lembrou-nos de Parquet Courts, nomeadamente pela entrega vocal, mas a atmosfera é mais de cântico de futebol. Para a despedida, batemos ao pé ao som da versão de “Walk Like an Egyptian”, dos The Bangles, uma excelente escolha que nos relembrou do quão divertida e versátil essa canção é.
Com uns quantos minutos de atraso, o espectáculo de ASAP Rocky começa a ser preparado, enchendo-se um enorme crash test dummy que ocupa metade do palco. A expectativa vai-se criando e, antes da entrada do rapper, um curto vídeo exorta a que o público faça moches conscientes e que tome conta do seu próximo. Essa consideração estende-se à atitude de Rakim Mayers, que nos pede desculpa pelo atraso, devido a não se sentir muito bem. Isso ia-se entrevendo na sua performance com várias pausas que cortavam um pouco a energia de momentos como “Praise The Lord (Da Shine)” ou “Doja”, mas ainda assim a sua atitude combativa e de genuína gratidão por poder estar ali a actuar falaram mais alto.
O início pecou por alguma repetição nas batidas do alinhamento e na fórmula de crescendo, moche e intensa fumarada. No entanto, o concerto foi ficando mais interessante à medida que trazia alguma variação, como na vertiginosa “L$D”, canção que parece estar sempre envolta em fumo, aqui completa com efeitos visuais alucinogénicos. Outra boa opção foi a inclusão de “Love$ick”, a dançável canção que partilha com Mura Masa. Ainda houve tempo para jogar ao pedra, papel e tesoura com um fã e levá-lo ao palco para escolher uma canção, num momento verdadeiramente feliz.
Ainda antes de ter terminado o concerto, decidimos fugir para o palco secundário, onde o duo David e Miguel já se encontrava a prestar homenagem a tempos idos da cultura portuguesa, com um som romântico, foleiro e sensual — muitas vezes merecendo todos esses epítetos ao mesmo tempo. Talvez pela hora avançada, a energia foi muito superior àquilo que Palavras Cruzadas, o disco de estreia do projecto, faria prever. Nem os problemas técnicos da guitarra de Marquitos (vestido como se tivesse acabado de sair de um baptizado) impediram o público de beber de todas as palavras de David Bruno e Mike el Nite, seja quando pediam palmas para a organização e os bombeiros ou quando homenageavam os trabalhadores do sexo em canções como “Amor Pago” e “Dias de Varão”.
O alinhamento percorreu todas as Palavras Cruzadas e ainda a outsider “Interveniente Acidental”, primeira colaboração de David e Miguel. Houve a dramática “Rosa”, cuja guitarra a puxar ao fado é absolutamente deliciosa, a uivante ode amorosa “Sónia” e ainda um bis de “Inatel”, o grande momento que celebra essa grande instituição portuguesa. A sua transversalidade torna-a num alvo perfeito para uma das letras incisivas deste projecto que engrossa cada vez mais o nicho nacional de uma música meta-humorística, que não perde nada de mérito artístico. Esperamos que continuem nesta senda, pois mais concertos assim serão sempre bem-vindos.
No final, já cansados, assistimos a um pouco da electrónica desconstruída de Flume, que não nos entusiasma muito. Apesar de se imiscuir nos meios mais alternativos e vanguardistas da electrónica, a música do australiano parece normalizar esses impulsos e processar a música para ser consumida por massas de uma forma. Os números e o entusiasmo do público falam por si, por isso, claramente, o produtor está a fazer algo certo, mas é um fenómeno difícil de entender.
Hoje é o segundo dia de festival, que contará com nomes como C. Tangana, Silva, GoldLink, Nathy Peluso, Samuel Úria ou Pedro de Tróia.