Super Bock Super Rock, dia 1: reafirma-se a electrónica crioula portuguesa
À 25.ª edição, o Super Bock Super Rock regressa ao Meco. Felizmente não há tanto pó como rezava a lenda das edições anteriores, e embora os palcos do recinto estejam muito próximos uns dos outros, circula-se bem (parece mais pequeno do que aquilo que é). O sol desce a poente, os pinheiros iluminados pelo fim de tarde de verão, e temos um cartaz inteiro para descobrir ao longo dos próximos três dias. Será uma edição eclética, de fruição e descoberta.
Começamos a nossa aventura em Marlon Williams, no palco EDP. Já o tínhamos ouvido em Paredes de Coura em Agosto passado, e gostámos mais aqui. O cantautor neozelandês interpreta os temas do reportório com a sua característica voz, grave e afectada. A performance convoca uma certa teatralidade, embora sempre de forma contida e com acompanhamentos mais ou menos lineares. Destaque para o baixo e para a guitarra num ou outro tema, nomeadamente quando a banda se dispõe a fazer uma jam mais imersiva. Marlon cantou uma música na sua língua natal, e “Party Boy” foi contagiante. Foi ganhando força à medida que avançava, mas saímos pouco antes do fim para apanharmos um pouco mais de Cat Power.
O concerto da americana, que já leva na bagagem quase três décadas de carreira, terá perdido um pouco pelo ambiente e contexto em que foi colocado. Embora o cenário de sunset no palco principal caísse bem à sua música, o público estava distraído, não só mais para trás como também nas filas da frente (provavelmente já de gente a guardar lugar para Lana ou outro dos nomes que a antecederam). Custa mais quando o artista colocado no slot inicial é já um titã do cancioneiro da música popular. O acompanhamento minimalista da banda de Power impunha-se com alguma dificuldade, embora se reconhecesse a beleza dos temas que compuseram a setlist.
Voltámos ao EDP para ouvir do princípio o concerto de Dino D’Santiago. Podemos dizer que foi o primeiro momento do festival em que efectivamente nos divertimos. Este funaná do futuro, que é como que empacotado para chegar a uma audiência mais vasta que a da música étnica, apresentou-se com dignidade diante de um público claramente disponível para dançar – fenómeno que só voltámos a presenciar no concerto de Branko, e que foram a excepção numa noite em que abundavam espectadores mais estáticos. Dino tinha a suportá-lo três artistas ao comando de para electrónicos, e que também providenciavam bonitas vozes secundárias. No final, depois de pôr toda a gente a cantar consigo os refrões (até as músicas novas que interpretou convenciam à primeira), desceu à plateia e dançou no meio de um delirante público. Soube muito bem fazer parte daquela festa.
Se o público pudesse, adoptava os Jungle. Já o tínhamos sentido em Coura, voltámos a sentir aqui, embora o slot horário no SBSR tenha sido menos nobre. As boas energias da banda londrina convocam um estado de boa disposição geral, guiada pelos falsetes dos vocalistas e pelo tempo sempre contido dos seus temas. De alguma forma a fórmula resulta – apesar de algumas dificuldades de ordem técnica no som. Apesar de um reportório aparentemente derivativo, com temas muito semelhantes a seguirem-se uns após os outros, os Jungle tocam uma corda do espectador e não há pé que não se bata no chão ao ouvi-los. (Por motivos de honestidade intelectual desta reportagem, o som da banda pouco ou nada diz ao autor deste artigo; mas o balanço que fazemos dos amigos e conhecidos a quem auscultamos indicam-nos que provavelmente somos nós a ave rara).
Segue-se aquele que foi um dos grandes concertos na primeira noite do Super Bock. Novamente no palco EDP, na zona mais afastada do palco principal. Branko, diante de um computador e de uma mesa repleta de botões, deu um concerto absolutamente contagiante. Electrónica de alto nível, sempre a convocar a música do mundo, que evocava também visualmente com os vídeos que eram projectados na tela atrás de si. A música de muitos lugares era processada pela sensibilidade do produtor português. Os primeiros 25 minutos foram um crescendo emocional que não parecia querer dar tréguas, com melodias bonitas pintadas a timbres coloridos, e compostas em ritmos partidos sempre a piscar o olho ao afrohouse. Dois convidados em cima do palco: Cosima cantou dois temas, mas Branko pareceu conter-se para lhe dar espaço; já Dino D’Santiago fundiu-se por completo na eletrónica do produtor, e foi pena o concerto ter-se prologado mais cinco minutos no fim (epílogo algo desnecessário). Grande concerto que terá deixado poucos ouvintes indiferentes.
A indecisão de ir ver Conan Osíris (pela quarta vez em ano e pouco, diga-se de passagem) ou The 1975 resolveu-se de forma intuitiva naquele momento. Após os concertos pintados a tons de crioulo de Dino D’Santiago e Branko, a sequência lógica era encerrar a trilogia no fenómeno do momento da música (e da cultura?) portuguesa. E pela primeira vez vimos Conan rodear-se de dois instrumentistas ao vivo: um flautista e um outro instrumentista (cordas indianas não identificadas). Pena o som do palco Somersby não lhes ter feito jus, com os instrumentos vários decibéis abaixo da soundtrack pré-gravada, e uma sensação geral de distorção e pouco brilho na mistura. Contudo, Conan voltou a mostrar-se um colosso, diante de uma plateia que lhe é cada vez mais grata e dedicada. “Telemóveis” soou gigante; uma vencedora para quem dança com ela. Que continue a ousar fazer diferente; só fará bem.
Metronomy teria merecido a nossa audição, mas preferimos chegar meia-hora mais cedo a Lana del Rey para conseguirmos arranjar um bom lugar. Mais do que próximo da frente, interessava-nos estar perto da régie, e apanhar o melhor som possível. O plano era bom, mas o som esteve quase sempre aquém. É triste começarmos a nossa opinião ao concerto por aqui, mas não nos é possível de outra forma. O som soou quase sempre compactado, unidimensional, baço, como se ouvíssemos uma mistura mono de baixa qualidade. Guitarra: ouvimo-la em três músicas, se tanto; e a sua presença teria feito bastante diferença.
“Venice Bitch”, por exemplo. A decisão de fechar o concerto com este novo single, é, do ponto de vista do alinhamento, a escolha “certa”. A música prolonga-se num coda instrumental e psicadélico ao longo de dez sonhadores minutos. Mas o que ouvimos no Meco, no final do concerto desta estranha diva da pop, não foi nada disto – a música parecia arrastar-se, amorfa, e a quantidade de frequências filtradas impediram-nos de distinguir sequer o riff principal da canção.
Não há nada a apontar no alinhamento e no staging de Lana del Rey, cuja presença em Portugal é muito bem-vinda depois de sete anos de ausência. Mas esperavam-se mais músicos em palco, maior dinâmica sónica, maior risco vocal por parte da cantora (que se poupou muito) e uma energia mais pura.
Lana é uma figura encantadora, que se confessou deslumbrada com o dia passado em Lisboa, entre o castelo, a baixa e a marginal. Num dos momentos mais estranhamente cativantes do concerto, tendo por fundo uma música ambiente discreta mas luminosa, passeou-se por entre a fila da frente, distribuindo autógrafos, tirando selfies, e aceitando presentes – numa cena quase solene. O medley que marcou o meio do concerto juntou algumas das mais bonitas melodias da sua carreira. Os temas do primeiro disco voltaram a provar o impacto que a sua estreia teve no panorama pop da década. E “Doin Time”, mais um dos novos temas produzidos por Jack Antonoff, foi talvez a canção que soou mais cheia e envolvente em todo o concerto. Mas esperava-se mais: não estivemos perto da catarse.
A primeira noite do Super Bock Super Rock foi, assim, marcada pelos novos ritmos crioulos de uma electrónica portuguesa que tem vindo a descobrir novos mundos, e a reinventar-se com muito ritmo e mestria. De certa forma herdeiros dos Buraka Som Sistema – banda que, estamos em crer, o tempo continuará a consagrar cada vez mais – o trio português que destacámos nesta reportagem foram o dark horse da abertura deste cartaz. Mais logo a festa segue com Kaytranada, Christine and the Queens e FKJ.