Susana Loureiro: “A legendagem na Netflix consegue fazer mais jus ao original. Mas é preciso que seja feita por profissionais”
Portugal é um dos países europeus com maior tradição de legendagem. Lemos legendas todos os dias em séries, filmes, videojogos, telejornais, entre outros. Esperar-se-ia, portanto, que se reconhecesse a sua importância no quotidiano português, porém estamos longe disso, infelizmente. Não só o valor da legendagem passa virtualmente despercebido, como é ainda persistentemente atacada por críticas infundadas quando falta uma ou outra palavra numa legenda. O que o público desconhece é que essa técnica de tradução para legendagem apelida-se de condensação e consiste em cortar certas palavras para permitir que se consiga, efetivamente, ler uma legenda confortavelmente.
E se por um lado a proliferação de serviços de streaming como a Netflix, a Amazon Prime ou a Filmin nos expõem cada vez mais à legendagem, a realidade financeira dos tradutores de audiovisuais é diametralmente inversa; sendo a área da tradução audiovisual uma das mais mal remuneradas entre os principais ramos da tradução.
De forma a dar a conhecer a realidade da tradução audiovisual e dos seus tradutores, falámos com Susana Loureiro, tradutora de séries de peso como “Rick and Morty”, “Black Mirror”, “Por Treze Razões”, para enumerar algumas, e traduziu ainda filmes para o Fantasporto.
Porque dependemos tanto da tradução para legendagem, mas não lhe reconhecemos o devido valor?
A tradução para legendagem é fundamental para todas as pessoas que não são fluentes numa determinada língua. Podemos ir a Espanha e falar “espanholês”, mas será que compreenderíamos uma série de época espanhola? Ou até mesmo uma série atual com imensas referências culturais e expressões idiomáticas? É aqui que entra a tradução, ao transpor para a nossa própria língua e cultura não só palavras como também os traços daquele país para que nós os percebamos. Porém, o público não tem em plena consciência o trabalho implicado na tradução para legendagem. Para um espectador que sabe falar outra língua, embora não a domine, tudo o que ele vê nas legendas são incorrespondências, pois espera que a tradução seja literal. Se ouvir “a palavra escreve-se com 3 letras” mas ler “a palavra escreve-se com 4 letras”, vai assumir que é um erro e não que a palavra em questão tenha um número de letras diferente em cada língua. Desta ignorância quanto ao trabalho de tradução nasce o desprezo pela área. E mesmo quando uma tradução não tem nada a apontar por parte do público, não se torna mais dignificada aos olhos destes pois a tradução para legendagem acaba por ser invisível, sendo, no fundo, esse o seu objetivo: integrar-se tão perfeitamente no meio em questão que o próprio espectador se esquece de que está a ler uma legenda.
Como vê o estado da tradução para legendagem em Portugal? Quais os principais desafios?
Neste momento, é uma área muito vulnerável. Os preços praticados chegam a ser completamente irrazoáveis para quem quer viver apenas da tradução para legendagem. Muitos veem-se obrigados a sair da área ou a ter de a conciliar com outra atividade. A grande maioria dos tradutores de legendagem em Portugal trabalha a recibos verdes. Há tradutores que chegam a trabalhar 14 horas por dia, 7 dias por semana. Isto equivale a uma carga horária superior a 80h/semana, o dobro do que é obrigatório por lei. E não o fazem para comprar mansões, mas sim para poderem chegar ao final do mês e, com sorte, não ficarem a dever dinheiro a ninguém. Enquanto freelancers, não têm direito a férias nem a subsídios. Como seria de esperar, esta situação acaba por afetar a qualidade da tradução. Entre prazos apertados e trabalhos mal pagos, é difícil velar pelo rigor que a tradução para legendagem exige. Os próprios clientes finais, sejam eles canais ou exibidores de cinema, não parecem dar a devida importância ao produto final, esquecendo-se de que uma má tradução e uma má legendagem podem afetar as suas audiências. Quando o público comenta negativamente uma tradução para legendagem, não está verdadeiramente a criticar o tradutor, embora seja essa a percepção geral. Na verdade, está a criticar o local onde essa tradução passa, que não tenciona prestar um melhor serviço aos seus clientes. O desafio é consciencializar o público do que envolve a tradução para legendagem para que este exija uma melhor qualidade, o que iria afetar diretamente os tradutores, que passariam a ser vistos como profissionais qualificados, merecedores de melhores condições.
Há quem pense que basta saber uma língua para se traduzir. Na sua experiência, qual a importância da formação em legendagem?
A legendagem é um ramo muito específico dentro da própria tradução. Nem todos os tradutores estão qualificados para trabalhar em legendagem. É necessária uma amálgama de conhecimentos técnicos e talento criativo para traduzir discurso falado, sobretudo quando usado em entretenimento. Um só filme pode conter linguagem informal, termos médicos, termos jurídicos, termos de um desporto que nem sequer existe no país para onde se traduz e ainda termos culinários, por exemplo. Não basta ter glossários; é também preciso saber adaptar o discurso ao ambiente do filme para lhe dar naturalidade. Traduzir um “damn it!” dito por um adolescente no século XXI por “arre!” seria tão grave como pôr um “bué” em Downtown Abbey. Além disto, há ainda a questão da parametrização, muitas vezes ignorada e que é essencial na tradução para legendagem.
A legendagem é, muitas vezes, criticada pelo público por ficar pouco tempo no ecrã ou por omitir e mudar certas palavras. Qual a realidade por detrás disto?
O processo de legendagem exige que haja parâmetros que definem aspectos como o tempo de exposição de uma legenda, o tempo de leitura, os caracteres por linha, entre outros. Se uma legenda fica pouco tempo no ecrã é porque o espectador não conseguiu ler o texto todo que a legenda continha. Isto acontece porque os humanos têm uma determinada velocidade de leitura; ou seja, leem, por segundo, um certo número de caracteres. Este valor varia conforme a faixa etária e até conforme o país: normalmente, em países com maior tradição de legendagem, a velocidade de leitura é superior à dos países com tradição de dobragem. Este parâmetro também pode obrigar a omissão ou alteração de algumas palavras. Por muito que o público queira uma tradução para legendagem absolutamente fiel ao original, a verdade é que, em muitos casos, não a conseguiriam ler e ficariam a perder na mesma.
Qual o seu processo quando lhe surgem novos projetos?
Quando recebo um novo projeto, antes mesmo de o aceitar, vejo sempre que tipo de projeto é para avaliar se consigo ou não fazê-lo. Isto não é apenas por uma questão de gestão de tempo, é também para não aceitar nada que não seja capaz de fazer. Por exemplo, dificilmente aceitaria uma série de época pela simples razão de que não me sinto confortável com diálogo por vezes arcaico, que não domino de todo. É muito melhor deixar um tradutor mais qualificado ficar com esse trabalho para que o produto final tenha mais qualidade.
Antes de começar a tradução em si, vejo sempre primeiro o vídeo todo para perceber melhor a narrativa. É neste processo de visualização que acabo por legendar, a menos que a legendagem tenha sido enviada pelo cliente; é um processo muito comum com clientes estrangeiros, como é o caso da Netflix, onde os tradutores recebem um ficheiro legendado com o texto em inglês, chamado template, e traduzem com base nele. Após a visualização, e possível legendagem, começo a tradução. Quando a termino, faço uma revisão final, tanto da tradução como da legendagem, e, sobretudo, gramatical, que é fundamental, e envio o ficheiro ao cliente.
Netflix vs. canais. Porque é que ainda se censura o calão em horário nobre? O que é que isso implica quanto à perceção do filme/série?
O fim do Estado Novo não significou um fim à censura no geral. Esta permanece na televisão pública, onde filmes e séries com calão no seu original são censurados. É compreensível que um canal não permita asneiras em horário nobre. O problema está em adquirir conteúdo que as use, com cenas de violência e sexo, e emiti-lo com uma tradução censurada. O tradutor é obrigado a alterar a essência daquele filme ou daquela série. Se falarmos de um filme de autor, que direito temos em censurar algo que é visto como uma obra de arte? É provável que este problema surja da máxima “a palavra escrita é mais forte do que a palavra falada”. Mas, nos dias de hoje, será que ainda é válida?
Felizmente, a Netflix veio romper com essa norma, talvez porque, quando uma pessoa escolhe ver determinado filme ou determinada série na plataforma, sabe logo aquilo que a espera ao ver a classificação etária e o que a justifica, seja a linguagem, o teor sexual ou cenas de violência. Com isto, a tradução para legendagem na Netflix consegue fazer mais jus ao original e os tradutores podem dar mais largas à imaginação e apresentar uma qualidade que acaba por se destacar na positiva. Contudo, é preciso que a tradução seja feita por profissionais, o que nem sempre acontece na plataforma; daí as várias queixas muitas vezes feitas ao serviço que, até ao momento, persistem.
O que é preciso para se ser bom tradutor? Qual o perfil adequado para um tradutor de audiovisuais?
Há muitas características necessárias para se ser um bom tradutor. A sua importância varia conforme cada uma. O consenso talvez seja que o tradutor tem de dominar não só a língua a partir do qual traduz mas também a língua para o qual traduz. Uma pessoa pode conhecer todas as expressões idiomáticas de uma língua estrangeira, mas, se escreve “Hádes cá vir!”, não domina a língua materna o suficiente para traduzir.
Tendo em conta a panóplia de temas que podem aparecer no meio audiovisual, o tradutor acaba por ter de saber um pouco de tudo. Tem de ser uma pessoa culta e que tenha interesse em aprender sempre mais sobre os mais variados tópicos. Até um tradutor vegetariano tem de pesquisar cortes de carne de vaca. Pessoalmente, penso que a humildade é uma característica importante. Nenhum tradutor é perfeito. É preciso ter confiança no próprio trabalho, mas não fechar os olhos às críticas. O tradutor disposto a aprender é superior ao tradutor que se recusa a isso pois um irá evoluir e o outro não. Os ensinamentos de tradutores mais experientes são fundamentais, mas também os tradutores menos experientes podem estar corretos. A tradução de audiovisuais é uma área com avanços constantes, o que obriga a que se tenha de estar sempre a par das práticas atuais. Só assim um tradutor poderá fazer um trabalho de qualidade no ramo.
O que se pode fazer para mudar o estado das coisas em relação à legendagem em Portugal?
A única forma de mudar a forma como se percepciona a legendagem em Portugal seria consciencializar o público da tradução para legendagem. Se os próprios espectadores exigissem mais, os serviços seriam obrigados a melhorar a sua qualidade, o que, no fundo, seria benéfico para todos: os clientes ficariam mais satisfeitos e os tradutores teriam mais prestígio e poderiam sair da situação precária em que se encontram. É também necessário que os tradutores se unam. Sendo indivíduos que trabalham maioritariamente isolados, é difícil criar um sentido de comunidade e de união. Os tradutores acabam por se ver muitas vezes como concorrentes em vez de como colegas. Esta lacuna impede as coisas de mudar. Com a união dos tradutores de audiovisuais e a valorização dos próprios do seu próprio trabalho, bem como a do público, Portugal talvez se tornasse um país de referência para a tradução de audiovisuais.
Entrevista de Nuno Sousa Oliveira
Nuno Sousa Oliveira é licenciado em Cinema e Audiovisual pela Escola Superior Artística do Porto e mestrando em Tradução pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.