“Suspiria”, de Luca Guadagnino, apela só ao movimento e à expressão do corpo
Eis que nos chega mais um filme do siciliano Luca Guadagnino, “Suspiria” , que estreou no âmbito do Lisbon & Sintra Film Festival chega também às salas nacionais a 22 de Novembro. O realizador italiano traz-nos desta vez não um delicado e romântico filme como Call Me by Your Name, mas sim um remake de um filme de culto dos anos 70, também ele chamado “Suspiria“, realizado pelo mestre Dario Argento.
Guadagnino estreia-se assim no género de terror e altera todas as perspectivas formadas pelo público que tem como referência o filme original. Um filme que causa alguma inquietude e expectativas altas, conta com oo norte-americano David Kajganich na escrita, sendo a fotografia assinada por Sayombhu Mukdeeprom e a banda sonora pelo fantástico Thom Yorke.
Guadagnino é um dos nomes mais promissores do novo cinema italiano. Neste caso, não se limitou a reescrever uma cópia exacta do filme original, preserva sim alguns traços alterando tudo o resto. Na realidade ele realiza e “reconstrói” o filme, baseando-se nas sensações que teve quando viu pela primeira vez o filme ‘ Suspiria’ (1977).
O primeiro acto do filme começa em 1977 em Berlim, onde surge imediatamente a protagonista Susie Bannion (interpretada por Dakota Johnson), uma bailarina que pretende entrar na prestigiada escola de dança Markos Tank Company. Assim que se começa a criar alguma estabilidade, a banda sonora leva-nos para longe da chuva e para perto de Patricia (interpretada por Chloë Moretz), uma ex aluna da escola, desaparecida, que agora se encontra no psiquiatra de forma perturbada e frenética. Através da entrada de Susie na escola, começamos a perceber algumas teias enfeitiçadas e misteriosas formadas pelas coreógrafas, principalmente por Madame Blanc (interpretada por Tilda Swinton), e pelas amizades de Susie.
O momento que vai intensificar a toda a narrativa começa com os ensaios da peça Volk e por fim com a sua exibição.
A melhor interpretação vai para a personagem de Madame Blanc, Tilda Swinton consegue sempre uma atenção excêntrica, todo aquele ar enigmático causa logo curiosidade imediata, é incrível como ela consegue guardar tanto mistério e obscuridade sem ser uma personagem que tenha acções ou movimentação que chamem à atenção. A expressão corporal dela é absoluta e dita toda esta magnificência à qual já estamos habituados. Além da excelente interpretação de Madame Blanc interpreta também Helena Markos que aparece apenas no clímax do filme, uma criatura asquerosa, que causa alguma perturbação e desconforto, Tilda torna-se irreconhecível.
Já a interpretação de Dakota Jonhson deixa muito a desejar, sendo ela a protagonista, faltou-lhe tudo. Esquece-se de absorver a escuridão do filme, não vemos a transformação dela, vê-la na primeira meia hora do filme ou na última meia hora torna-se o mesmo. Há um vazio não na interpretação das expressões do corpo, mas nas expressões da face. Ao contrário do filme original em que a protagonista Suzie interpretada por Jessica Harper, não tem só uma aparência bonita, tem também um mar de emoções bem visíveis, entendemos a personagem nos momentos de medo ou de dúvida. Seguramente a escolha da actriz principal faz toda a diferença na narrativa, sendo esta uma narrativa coberta de obscuridade.
Um dos pormenores cuidadosos do filme é o aparecimento de Jessica Harper, desta vez como a personagem feminina que o psiquiatra procura durante todo o filme, sendo este um cenário pós-guerra.
O filme original começa automaticamente com algum suspense e ambos os filmes levam a chuva e o frio como um factor sério, porque o medo também causa um frio incómodo, e esse é um elemento que ambos os filmes retratam e mantêm muito bem.
Uma das coisas que se sentem logo no inicio do filme é a falta de uma estética acentuada e marcante. Logo que Susie entra na escola parecia um vazio, sem símbolos ou cores, tudo muito cinzento por dentro e por fora. Para uma grande apreciadora do filme original, neste sinte-se que me faltou uma marca visual arrojada e memorável. Argento escolhe marcar a narrativa com referências cromáticas, cores bastante vibrantes que nos hipnotizam e que agilizam as partes violentas do filme. Quanto à fotografia, Guadagnino e Mukdeeprom escolhem ter uma paleta de cores mais neutras, sem grandes referências e meio incolor. Com isto, tornam o filme mais crú e menos fantasioso que o original. É uma boa adaptação da cinematografia à época vivida no filme, onde tudo parece mais frio e sóbrio próprio de um cenário pós guerra, o que faz todo o sentido. A única cena do filme com cor, é quando acontece a grande resolução da narrativa, o clímax, onde fica tudo vermelho néon, a violência é mascarada e a história deixa de ser um completo mistério voltando mais tarde para a cor original.
Uma das coisas que se assemelha ao original é a composição cuidada e equilibrada, a do original leva o filme para as teias do mistério, já a composição do novo filme leva para as teias do movimento, é essa a sensação que me dá.
Outra coisa que incomoda durante o filme são os efeitos sonoros, que criam alguma desconcentração, estando tudo demasiado alto e desequilibrado, ao contrário da excelente banda sonora de Thom Yorke, que de certa forma comunica grande parte do filme, e que serve para colar partes do filme. Das 25 músicas algumas parecem tão melódicas e harmoniosas, outras muito quietas e misteriosas, mas as favoritas ainda são as que fazem com que o espectador sinta os movimentos do filme, os movimentos do corpo e os pensamentos da alma; como é o caso das músicas “Suspirium” e “Unmade”.
A bela banda sonora acompanha o movimento, a dança das questões. Esse é um ponto positivo do filme. Vemos coreografia, vemos corpos, mudança de movimento, jeitos e energia. Neste caso a dança entra directamente na narrativa, e conta também ela uma parte da história, tornando-se um elemento vital, não fosse o dançar aquilo que traz poder para as feiticeiras da Markos Dance Company. Uma das partes mais violentas do filme – talvez a mais memorável e incomodativa – é quando Susie improvisa uma dança e cada movimento que ela faz serve para ferir outra bailarina Olga. Conforme os movimentos vão ficando mais fortes e precisos, somos abalados pelos sons e imagens de ossos a partirem-se, de partes do corpo a desfigurarem-se, de dor e crueldade. A dança torna-se num ritual esotérico que torna as feiticeiras mais fortes, sugerindo a direcção dos feitiços e a destreza deles. Este é um dos momentos crus, hediondo, que dão então a ideia de violência psicológica e que Guadagnino consegue tão bem mostrar. Ele de certa forma mantém as personagens dentro de um palácio de lágrimas, de dor física e psicológica.
A violência no filme de Argento fica-se pelo sangue e pelas cores intensas. Sentimos o incómodo mas não da maneira como Guadagnino o trabalhou, que se foca na dor corporal das personagens e que resulta num incómodo psicológico extremo, até difícil de ver para o espectador.
A versão original continua a ser preferida, mas também como admiradora do mesmo não poderia ser de outra forma. Sem dúvida que o “Suspiria” de Argento não se torna só num filme mas numa experiência sensorial. Este novo filme parece que perde alguma da beleza e também se perde na densidade temática; está em todo o lado mas de forma superficial. Sente-se que faltou alguma delicadeza na abordagem e nos movimentos de câmara, tornando-se um melodrama com demasiado tempo fílmico e muito lento, ao contrário do original. Tudo estava em exagero, sem medidas, extravagante. Faltou-lhe encontrar aquele canto escuro, próprio dos filmes de terror, e também trabalhar as sombras e o suspense. Tudo se movimenta e a fobia e horror aparecem várias vezes dentro do filme, e esse é um aspecto que foi bem conseguido, apesar de ser um medo causado pelo choque e desconforto. Outra mais valia é o apelo ao movimento e à expressão do corpo, que se mistura com a dança, e com o movimento das personagem dentro da micro-narrativas.
“Suspiria“, de Luca Guadagnino estreia a 22 de Novembro nas salas portuguesas.