Taylor Swift renasce das cinzas com folklore
Nota prévia: este texto acaba mais por ser um de apreciação do que uma crítica, dado que cai num domínio de subjetividade ainda mais profundo do que o já inerente ao género. De qualquer forma, terá as estrelas na mesma, que bem as merece.
A primeira vez que ouvi folklore, há uma semana, fiquei absolutamente boquiaberta. Já suspeitava que este disco seria algo diferente – por ter sido anunciado apenas umas 17 horas antes, pela capa, por toda a envolvência. Mesmo assim, fiquei agradavelmente surpreendida pela sonoridade do disco. Ainda mais surpreendia por ver (ou ouvir) uma Taylor madura, com música sóbria e a anos-luz do som de princesa da pop perdida pelo folclore das revistas cor-de-rosa e das redes sociais que o mundo conheceu nos últimos anos. Agora, o folklore é outro – e é bastante mais interessante assim. Mesmo tendo nascido de muita narrativa ficcionada, ou vivida por terceiros, este disco sente-se mais honesto do que vários outros da cantautora.
Não duvido que a Taylor tenha escrito a maior parte das suas músicas com base em experiências próprias ou que se tenha atirado aos lobos para o fazer; aliás, esse é um dos aspetos pelos quais ficou conhecida. Mas este disco é feito de uma matéria diferente. Um dos aspetos que, pessoalmente, me incomoda no universo pop é que as canções parecem gravitar todas em torno de paixonetas ou romances mal resolvidos. Swift passou a última década a fazê-lo e, mesmo não tendo fugido à tentação neste disco, fá-lo de uma maneira consideravelmente mais séria, crua e matter-of-factly. Aqui já não vemos qualquer tentativa de vingança, apenas aceitação e até alguma saudade.
É um disco que transparece uma delicadeza extrema, ainda que transborde segurança. Os instrumentais são puros, o dedilhar das guitarras ressoa pela alma. folklore tem a capacidade rara de nos tornar nostálgicos por vivências que não são nossas, com saudades do que nunca vivemos, porque as memórias são connosco partilhadas mas não nos pertencem. Afinal, a música é mesmo isso: uma arte de partilha e recriação. De sensações e sentimentos e tudo o que vagueia entre as duas. Relembra certas músicas dos Daughter e de Sufjan Stevens, com um toquezinho (porque não?) até dos próprios The National. Dá um cheirinho do que poderá ser uma Taylor Swift nos seus trintas, deixando para trás os anos da juventude revoltada, mas relembrando os momentos da infância em que cantava aos ventos o seu amor a Tim McGraw.
Depois de oito anos a tentar demasiado – e a deixar transparecer que tenta demasiado – alcançar os tops e manter a posição de pérola da pop mundial (ao mesmo tempo que se perdia com desentendimentos mediáticos e recorria à música para ter sempre a última palavra), este disco assemelha-se a uma libertação. Libertação dos paradigmas da indústria musical, do marketing e das campanhas promocionais exaustivas que começam meses antes dos discos serem lançados – e que só fazem com que, quando, finalmente, chega o dia do lançamento, já ninguém consiga ouvir falar do assunto. Libertação do que acha que deve dizer, das palavras que quer que alguém ouça, da pessoa que o mundo espera que seja. Liberdade para ser, simplesmente.
folklore é muito mais coerente do que qualquer um dos álbuns que saíram desde que deixou a fase country, muito mais coeso e sólido, ainda que experimental e exploratório. É uma Taylor Swift a descobrir as várias Taylor Swift musicais que tem dentro de si, e a perceber que talvez o universo pop que consome singles como fast food já não seja onde pertence (o mundo pode não concordar comigo, mas eu bem preferia que assim fosse). Parece ter decidido despir-se de todos os muros que ergueu ao longo dos últimos anos, cantando com uma vulnerabilidade que parece ecoar diretamente dos cantos mais recônditos da sua alma para os nossos ouvidos.
Em 16 canções (mais a exclusiva do disco físico) e pouco mais de uma hora, vemos uma mulher de 30 anos a avançar pelo mundo do storytelling e por novos recantos do espectro auditivo. Relembra a infância, a juventude e todo o processo de perda de inocência e alcance da maturidade, sem nunca esquecer o que significa ser mulher. Canta sobre histórias que conhece e sobre personagens que agora passou a conhecer, sobre mitos, memórias, realidades alternativas e divagações. Soa tudo muito mais autêntico, ainda que ela própria explique que manter os pés no chão esteja longe das suas intenções neste trabalho. É uma jornada de autodescoberta e autoaceitação, por domínios tanto concretos como abstratos, sempre com um toque de fantasia.
Paralelamente a isto tudo, também parece ser o cume da montanha a que Taylor parecia determinada em alcançar. Depois de tantos anos a dominar tops e cerimónias de entregas de prémios, sabe que pode lançar um disco de um dia para o outro sem qualquer tipo de antecipação, manobras nos media ou burburinho. E sabe que o reconhecimento vai chegar. Sabe que o nome Taylor Swift tem um cunho suficientemente forte para fazer com que jovens que nunca ouviram falar de música folk ou indie vão a correr ouvir o disco na mesma – e talvez até o apreciem. Num certo sentido, acaba por ser uma afirmação, tanto pessoal como artística.
Tendo, obviamente, passado grande parte deste tempo de isolamento a refletir, despejou uma parte de si em folklore, juntando mais um elemento ao grupo de discos compostos e gravados nestes tempos tão incertos. E mesmo pela incerteza dos tempos – como ela própria o afirmou na publicação em que anunciou o projeto – faz muito mais sentido, simplesmente, editar o disco quando pronto do que passar por toda uma fase de divulgação que se prolongaria por meses e largaria este conjunto de canções num planeta já bastante diferente. Há algo de profundamente apelativo na ideia de escrever, limar e divulgar diretamente, uma ideia que parece quase desconhecida à indústria no século XXI. Acaba por se perder imenso com estes processos de publicidade, porque todos mudamos um pouco todos os dias e o que vamos querer dizer amanhã já pode ser diferente do que queremos dizer hoje. Tudo na vida tem um espaço e um tempo, e é um produto do contexto em que se insere; alterar o contexto pode distorcer a interpretação do conteúdo e transformá-lo em algo completamente distinto.
Com folklore, Swift oferece a última prova da artista que há em si. Longe dos singles com refrões catchy e quase sempre dentro do mesmo registo, mostra que há muito mais em si para além disso. Tenta novos tons e mostra a sua capacidade vocal de uma maneira única até então; em certos momentos, soa quase a um espectro – ou ao que supomos que um fantasma soaria -, etérea, aterradora, perdida num limbo entre mundos. Mas a camada principal do disco (sendo isto uma opinião pessoal) é mesmo a instrumental. Cada nota está exatamente onde devia estar e a cada vez que ouvimos descobrimos uma nova. Os arranjos estão excelentes, a produção também. Nota-se que Taylor sabia bem o que queria para este disco e escolheu a dedo quem a poderia ajudar a consegui-lo. Entre outros, Aaron Dessner (The National), Jack Antonoff, a orquestração de Bryce Dessner ou mesmo a colaboração de William Bowery (que ninguém sabe ainda muito bem que é). A intervenção de Bon Iver (Justin Vernon) foi essencial para construir a canção mais bem conseguida do disco – e, arrisco-me a dizer, talvez da carreira inteira de Swift. Bem habituado a trabalhar com Aaron nos Big Red Machine, Bon faz um dueto com Taylor absolutamente arrepiante.
É um oitavo disco que sabe a primeiro: o primeiro de uma nova Taylor Swift. Uma fénix que ardeu veementemente mas, como tudo na vida, teve um fim. Agora renasce das cinzas, com uma honestidade e uma força desconhecidas até então.