“Tenet”. A Nolanização do espectáculo

por Rui Alves de Sousa,    25 Agosto, 2020
“Tenet”. A Nolanização do espectáculo
“Tenet”, filme de Christopher Nolan
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No livro “O Super Homem das Massas”, o escritor e ensaísta Umberto Eco faz uma análise aprofundada da literatura de Ian Fleming. Isto não é uma daquelas coisas pretensiosas de pessoa que começa a falar de livros para parecer bem, tem uma razão de ser, que vão já descobrir. É que Eco disseca todos os elementos que se repetem num livro de James Bond (o vilão, a apresentação da missão, as Bond girls, etc), mostrando que as aventuras do agente secreto seguem uma fórmula que se repete de romance em romance, com poucas variações ou surpresas.

Quase se pode resumir cada uma das aventuras em papel de 007 como uma equação matemática, em que a criatividade está apenas na mudança dos nomes e algumas características “especiais” dos vilões, das femme fatales (baptizadas com trocadilhos pouco ou nada subtis, sexualmente falando) e das restantes personagens secundárias. Aconselho-vos a ler esse ensaio porque é uma dissecação dos meandros de uma série literária de grande sucesso, e além de ser bastante exacta, é aplicável para muitos dos fenómenos best-seller dos nossos dias.

“Tenet”, filme de Christopher Nolan

Mas esta é uma crónica sobre filmes. E já agora, a dita fórmula Bondiana funciona melhor em doses de duas horas, com todas as possibilidades das imagens em movimento, que auxiliam a não reparar tanto na escrita (muitas vezes de qualidade duvidosa) dos guiões a favor do óptimo divertimento que proporcionam.

Lembrei-me deste texto (e claro, de Bond) ao ver “Tenet”, a nova investida megalómana de Christopher Nolan. São óbvias as influências do franchise neste filme de espionagem com uma espécie de viagens no tempo com uma espécie de romance com uma espécie de drama familiar. Até porque, na maioria dos filmes de Nolan, também podemos descortinar uma fórmula, onde uma série de elementos se vão repetindo: personagens de papelão (algumas servem só para irem dando as regras do “jogo” da narrativa), uma complexidade só aparente e debitada apenas nos diálogos, muita ciência assim atirada para o ar (nem que seja pelas personagens a perguntarem umas às outras coisas como “hei, sabes o que é o complexo temporal frigorífico de Lassie?”), uma seriedade tão forte que ocasionalmente é risível, e a queda para o lado humano que, por dar jeito, é a resposta para todas as coisas.

Não me levem a mal. Até porque eu, como espectador de cinema, estou próximo do average Joe que gosta de se regozijar com algumas doses de pura diversão. Não só fico expectante pelos 007 como pela saga “Missão Impossível”, em que cada novo filme parece superar as proezas técnicas dos anteriores. Ou seja, eu gosto de cinema de acção. Acredito que sempre será um género subestimado por não colocar a escrita, ou a poesia visual, ou outra coisa qualquer acima da imagem em puro movimento, mas é bem mais difícil fazer uma boa sequência com “porrada” do que criar uma interacção entre duas personagens polvilhada de tiradas espirituosas, ou um plano de uma mão a passar ao de leve por uma plantação de trigo. Este género cinematográfico é árduo e de risco elevado, mas quando funciona, funciona e de que maneira – e é um prazer ver os casos de sucesso.

“Tenet”, filme de Christopher Nolan

Por outro lado, compreendo porque é que os filmes de Nolan chamam tanto a atenção das pessoas, e porque este é daqueles temas que, por mais textos que se escrevam sobre ele, são sempre procurados nos sites de cinema. No fim de contas, todos nós gostamos de um bom espectáculo.

Mas Nolan é um caso à parte: cada um dos seus filmes gera um grande aparato social. É um exemplo da eficácia do marketing das majors americanas, que para promoverem os seus blockbusters no meio de uma oferta tão diversificada, precisam de sugar tudo o que está à sua volta com ainda mais agressividade do que outrora. Isto não é bom, porque só torna a nossa capacidade de escolha uma ilusão, mas é compreensível.

Há quem o considere Cristo na Terra e quem não se canse de desmascarar os seus truques de ilusionismo. Com “Tenet” apregoa-se que ficará ditado o futuro das salas de cinema. O sector depende do sucesso do filme nas bilheteiras para perceber o seu destino. Enfim, não exageremos: o futuro que aqui se espera descobrir é o do sistema norte-americano. Tal como referi noutra crónica, vimos nos primeiros tempos do desconfinamento que as pequenas salas de bairro de Lisboa e Porto voltaram a ter uma programação contínua e muitas sessões esgotadas, coisa que o circuito mainstream não conseguiu. Mas como sempre, Hollywood toma o seu caso pelo todo, e a maioria das pessoas deixa-se ir nessa lógica.

Pois bem, digo-vos que “Tenet” não vai salvar nada. Cada filme de Nolan é mais “mega” do que o anterior. Neste caso, imaginem um filme de 007 da era de Roger Moore que se leva a sério. É a melhor forma de resumir este thriller cheio de coisas que, no fim, dão em coisa nenhuma.

“Tenet”, filme de Christopher Nolan

Explico-me melhor, antes que os fãs do realizador preparem o alcatrão e penas para me castigarem: eu tenho uma relação ambivalente com ele. Gosto de “Insomnia”, talvez o seu melhor trabalho entre os que vi por não ser uma sua história original e, por isso, está despojada dos seus tiques. “Dunkirk” também não me incomodou por ser um filme de guerra que, não acrescentando muito aos milhões de títulos do género já existentes, até era um espectáculo sensorial algo interessante. Mas dentro dos filmes claramente com uma estrutura à Nolan, há dez anos vi “A Origem” e recordo-me de ter gostado bastante. Não o voltei a ver, mas como filme escapista era a soma dos elementos nolanianos num resultado até aprazível. O gimmick justificava a história e tornava-a interessante. O lado humano (o trauma de Di Caprio) fazia sentido e dava uma outra dimensão ao filme. A cadeia de sonhos interligados tinha o seu quê de empolgante.

O problema está no resto, nos seus filmes que ambicionam tanto que parecem até esquecer as coisas mais elementares. E “Tenet” é Nolan levado às últimas consequências. Não há deslumbramento possível num filme que parece uma paródia de Nolan, um trailer contínuo com estímulos a todo o momento ao longo de duas horas e meia.

É que um filme de acção tem de deixar o espectador empolgado, mas exceptuando nos minutos iniciais (a primeira sequência tem qualquer coisa, sim), só senti que era o filme que me estava a dizer “vá, aqui tens de te sentir empolgado! Então? Não ouves a música? Põe lá o teu coração a bater mais depressa pá!”. É muito cansativo, já que, ao mesmo tempo, a narrativa exagera ainda mais na descarga de conceitos que não levam a lado nenhum, nas personagens unidimensionais que nem para explicar as coisas servem, na gravidade de tudo que provoca ainda mais momentos de riso não intencional, e o tal lado humano da história para compensar toda a pseudo-ciência que a nada leva… enfim.

Filmagens de “Tenet”, filme de Christopher Nolan

Nem sei se os admiradores de Nolan vão descortinar alguma coisa de “Tenet” para além de duas horas e meia de parlapiê pateta com injecções de adrenalina artificial. É difícil entrar no “truque”, porque desta vez nem há um mínimo de consistência que justifique investir algum interesse nas peripécias. Nada mais há que símbolos amontoados num manto de retalhos. Eu queria gostar do filme, não entrei na sessão com pedras nas mãos, mas desta vez parece-me evidente que o ilusionismo habitual de Nolan nem funciona para divertir de forma ligeira.

É impressionante como tantos elementos de tensão e crescente suspense podem aborrecer, mas é o que acontece em “Tenet”. O método Nolan, aqui, ligou o complicómetro no nível 250. No fim é uma enorme canseira, e só me pergunto como é que, numa produção de tantos milhões, não houve ninguém que se tivesse apercebido que o resultado final seria isto.

Mas – e aqui quero terminar numa nota positiva – há que respeitar o realizador pela valorização que faz da experiência em sala. Nolan quer que os espectadores descubram o seu filme nos cinemas, e por isso, não foi parar aos VODs da vida, como aconteceu com muitas estreias durante a pandemia. E toda a necessidade de colocar os batimentos cardíacos num nível elevado funciona melhor numa sala de cinema, nem que seja só para dar dores de cabeça. É pena que a grande promessa messiânica do futuro do cinema esteja nisto. Valha-nos Elizabeth Debicki – quase diria que só por ela já vale o preço do bilhete.

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