“Tenet”, de Christopher Nolan: o feitiço do tempo ou o paradoxo do avô?
Tenet até poderia (deveria) ter a ambição de funcionar como um belo haiku.
Depois de toda a antecipação e ansiedade destilada nas semanas que antecederam a estreia de Tenet recebemos agora a consagração de uma nova cartada temporal pela mão de Christopher Nolan. Leia-se, a abertura de possibilidades narrativas paralelas onde o jogo com o feitiço do tempo nos leva a equacionar universos e dimensões, no mínimo, intrigantes. Mesmo do ponto de vista filosófico. Tenet até parece ensaiar uma exploração interessante do conceito de imagem-tempo, ou dos mecanismos inconscientes do pensamento, conforme concebida pelo emérito filósofo de cinema, Gilles Deleuze, no entanto, fica-se pelo aproveitamento comercial desse dispositivo.
Seja como for, Nolan tem pelo menos do seu lado o mérito de ter chamado a atenção do povo para o ‘acontecimento cinema’ (esperemos nós) e pelo retorno desse entretenimento em sala escura (mesmo com máscara). Foi, de resto, na primeira sessão paga que tivemos a nossa experiência. E a primeira nota a retirar é a de que o efeito de ilusão temporal voltou envolto num certo déjà vu, de certa forma oferecendo a possibilidade ao comum dos mortais decidir causas globais, como investido num papel de semi-Deus, levando-nos a questionar o papel fundamental da memória. É aí que Nolan manobra o elemento de ilusão do próprio cinema, editando uma realidade paralela e de tempo no seu interior.
Algo particularmente evidente nos anteriores, Inception – A Origem (2010) e Interstellar (2014), embora bem presentes desde a sua estreia em Following (1998), em que a uma realidade inteiramente diferente se vira contra um escritor depois de seguir pessoas ao acaso. A variante narrativa assumiu uma forma bem mais vincada em Memento (2000), ao operar uma permanente revisitação do futuro ao revés, naquele que será, talvez, o seu filme mais conseguido, bem como na nova encenação são tempo operada em O Terceiro Passo (2006). De fora deixamos a incursão de Nolan na saga Batman, numa aposta da Warner num dos seus ativos mais convincentes.
Ora em Tenet regressamos a esse controlo temporal, usado aqui como um artifício, permitindo operar interferências no passado, quase como se de um videogame se tratasse. A justificação científica usada é o “paradoxo do avô”, a tal especulação em caso de viagem temporal em que a possibilidade de matar o avô no passado, impossibilitaria assim a própria experiência. No entanto, como também nos explica o filme, isso não passa de um paradoxo. Ou seja, uma pura especulação. E é isso um pouco que é o anagrama intraduzível Tenet, ou seja, a possibilidade de poder brincar com essa ideia, bem como a de equacionar uma 3.ª Guerra Mundial.
A partir destes ingredientes filosóficos abre-se então uma história mais ou menos banal tendo um eventual conflito atómico como consequência final. Depois de ser o “infiltrado” em BlacKkKlansman, de Spike Lee, John David Washington passa a ser o ‘protagonista’, aqui ao lado do side kick, Robert Pattinson, mas onde não deixa de assumir que “a nossa ignorância é a nossa missão”. E a nossa missão qual é? “Salvar o mundo outra vez”. Isto porque “ninguém se importa com a bomba que não explodiu”, como dirá no final. O virtuosismo de Nolan finda aí, ou seja, quando esboça, lá para meio do filme (dos 150 minutos) um mundo oposto dentro do real. Sobretudo quando entramos naquele ritmo de trailer permanente, e em que o filme abandona mesmo a ideia de projeto artístico para se ficar pelo comércio.
Tenet até poderia (deveria) ter a ambição de funcionar como um belo haiku, mas arrisca-se a ser “pescadinha de rabo na boca”. Ainda assim não se furta até à tirada cinéfila, quando, salvo erro, o Protagonista declara no final “this is the end of a beautiful friendship”. Pena é Tenet ser um filme sem o seu “Rosebud”.
Crítica de Paulo Portugal, originalmente publicada em Insider.pt.