Terá a América mudado assim tanto desde os tempos de James Baldwin?
Há muito que se clamava pela tradução das obras de James Baldwin para o português, uma lacuna no panorama editorial nacional. No entanto, ainda que seja possivelmente o mais importante escritor afro-americano do século XX, pensador da condição negra na América (com a particularidade de, ao mesmo tempo, combinar em si a dupla condição minoritária de ser negro e homossexual), até há uns poucos anos atrás, mesmo nos Estados Unidos da América, havia caído um pouco em esquecimento.
Foram os fenómenos sociais a fazê-lo ressurgir. Numa altura em que a insurgência de movimentos como o Black Lives Matter, motivada pela violência policial para com afro-americanos, trazia a condição negra na América para o centro do debate, praticamente 30 anos após a sua morte, Baldwin voltou a ser ouvido e a sua palavra novamente espalhada, não apenas pelas livrarias, mas também pelo cinema, em I Am Not Your Negro, documentário que Raoul Peck fez focando-se nas suas palavras.
Esse documentário foi, aliás, instrumental para mostrar a falta que fazia a sua obra em Portugal, e acabou por ser, finalmente, a Alfaguara a editora a tomar a dianteira. Fê-lo, no entanto, com uma obra pouco expectável na obra do autor. A reboque de outra adaptação cinematográfica da obra de James Baldwin, a do seu romance If Beale Street Could Talk por Barry Jenkins, realizador de Moonlight, escolheu começar a publicação das obras de Baldwin não através de uma das suas obras mais conhecidas – Giovanni’s Room e Go Tell It On The Mountain na ficção, Notes of a Native Son nos ensaios -, mas por este Se Esta Rua Falasse, um dos seus romances mais tardios.
Ora, apesar de escrito enquanto vivia em Saint Paul de Vence, em 1974 (Baldwin viveu grande parte da sua vida quer em Paris quer nesta pequena vila no sul de França), Se Esta Rua Falasse é inegavelmente um romance do Harlem, num olhar a partir de fora para um problema que conhece bem dentro de si. Afinal, a condição de um negro na América não mudara muito desde que Baldwin se vira obrigado, para a própria sobrevivência, a abandonar a sua Nova Iorque natal para uma França que se lhe afigurava muito mais digna para alguém da sua condição. E, da mesma maneira que essa ausência de melhorias motiva a escrita deste livro, é essa mesma resistência à mudança que lhe dá novo relevo mediático hoje. Mesmo passadas tantas décadas desde este livro, a situação não se alterou assim tanto. Afinal de contas, a população negra continua, por exemplo, a estar sobejamente sobre-representada nas prisões norte-americanas, e continuam a abundar os casos de negros desarmados alvejados pela polícia, ou de assunção de culpa somente com base na cor de pele. Em Se Esta Rua Falasse, Baldwin narra-nos precisamente uma dessas histórias que, infelizmente, se revelam intemporais.
Detido injustamente por um polícia branco que já o havia marcado numa altercação anterior, Fonny é acusado de ter violado uma rapariga e é, por isso, colocado na prisão. É a sua namorada, Tish – que espera um filho seu -, quem narra toda a obra, e por ela acompanhamos o avançar do processo onde, infelizmente, nada os protege da inevitabilidade de terem de ser eles, família, a provar a inocência de Fonny. Acaba por ser, portanto, acima de tudo a vida fora da prisão que acompanhamos, o evoluir da situação de Tish e da sua família, e não tanto da de Fonny. Como prosseguir a vida quando um de nós foi injustamente levado, principalmente quando se afigura clara a possibilidade de ter um filho a crescer sem pai num mundo onde pode crescer para que lhe aconteça o mesmo que impediu o seu pai de estar presente? É a resposta da família de Tish, e não da de Fonny, que alimenta a esperança de um futuro diferente, um futuro no qual Fonny saia rapidamente da prisão para uma possibilidade de perseguir os seus sonhos: construir uma família com Tish e ser escultor. No fundo, pouco mais do que ter uma vida normal com a mulher que ama. Mas como pode ser tão ingénua a persecução de algo que para tantos seria apenas simples.
Vamos acompanhando, ao longo da obra, os momentos fundadores da relação de ambos; a forma como se conheceram enquanto crianças, como foram sendo os melhores amigos ao longo de todo esse período, como se aperceberam que, afinal, se amavam um ao outro, os seus sonhos de arranjar um lar juntos numa zona onde não sentissem, como no Harlem, o peso de toda essa opressão. No fundo, um casal à procura de se livrar dos seus constrangimentos para que possa, finalmente, viver a sua vida, para os dois e para cada um. Para que seja possível, finalmente, verem-se livres da condição castradora de terem nascido negros numa América profundamente racista, onde as próprias instituições do Estado impossibilitam a criação de um futuro diferente daquele que é, à partida, atribuído a quem, como Tish e Fonny, nasça naquelas circunstâncias. Não interessa se são o contrário da ideia que deles é passada à restante população, esse carimbo fica e tem consequências que se prolongam por todo o lado.
Contra esse estigma, essa injustiça, Baldwin não pôde deixar de se insurgir. Fez disso a sua luta, para que alguém como ele pudesse não ter de enfrentar aquilo a que ele se viu obrigado. Precisamente por esse elevado pendor social na sua obra (na qual os ensaios de Notes of a Native Son tomam um peso preponderante), pelo claro tomar parte na luta dos direitos civis, Baldwin acaba fundamentalmente visto como um escritor negro; mais um representante da comunidade que um escritor de pleno direito. O próprio Baldwin debatia-se com esse rótulo. Não o renunciava, via em si esse inegável papel, mas estava longe de se cingir a isso, porque essa é uma visão demasiado simplista para uma obra capaz de explorar tantos pontos.
Em livros como Giovanni’s Room, por exemplo, sobre um rapaz branco que se vê a braços com a sua homossexualidade na Paris dos anos 50 para onde emigrou, Baldwin põe precisamente de parte toda a questão racial, afirmando que não era capaz de se focar nos dois problemas, o da sexualidade e o da raça, ao mesmo tempo. A braços com tantos problemas, melhor que focasse a atenção num de cada vez. Porque, no fundo, a obra de Baldwin é a forma que arranjou para expulsar os seus demónios, para entender quem era: negro, homossexual, tudo isso e muito mais. Nessa exploração de condições minoritárias, busca, acima de tudo, a sua própria identidade. Para que sejam outros a dizer-lhe quem é, já basta o preconceito.