Terapia de Divã. É a criatividade uma forma de linguagem e comunicação?
(‘Terapia de Divã’ é a rubrica da Comunidade Cultura e Arte dedicada à psicologia. Semanalmente, temos todos um encontro marcado neste divã para, com o auxílio dos especialistas, discutirmos e entendermos melhor os mais variados assuntos — desde a sociedade até à criatividade — à luz do enquadramento psicológico. Para cada assunto visado haverá, primeiro, um texto opinativo de preparação, como o que se segue, com vista a contextualizar e preparar o tema que será abordado, posteriormente, com o respectivo especialista, em entrevista. Assim, damos-te também tempo para contribuíres com uma questão, que poderá ser seleccionada por nós, caso a queiras ver respondida por quem sabe. O tema em análise é “a criatividade à luz da psicologia”. De que forma a criatividade é uma forma de linguagem ou uma forma de comunicação? Não percas o ‘Terapia de Divã’ desta e da próxima semana).
Quando se fala em criatividade, o nosso pensamento leva-nos para a arte, e, quando o nosso pensamento nos leva para a arte, há muito quem pense que os artistas (aquela classe de degenerados) pendem só para a loucura, para o egocentrismo, para o egoísmo e que, geralmente, só vivem bem no seu mundo à parte. Haverá artistas assim? Não digo que não, em todas as profissões há pessoas com personalidades divergentes e a verdade é que o ser humano prima pelas mais variadas formas de ser e agir. Mas achar que, para se ser criativo, há que se ser um Van Gogh, senão mais vale ir para uma repartição de finanças, e que a arte é indissociável da loucura ou das pessoas que possam estar a ultrapassar um momento difícil a nível psicológico, é ter a visão muito curta.
A criatividade passa o epíteto da arte em si e a arte passa o epíteto da loucura. Quando olho para estas questões, não consigo deixar de pensar como a criatividade é, antes de mais, um processo de linguagem interna que se apresenta em forma de representações (imagens) que tanto podem ser visuais, verbais ou sonoras. E o que são essas representações senão uma forma de comunicação que nos ajuda a dar sentido ao que experienciamos neste mundo, numa conversa tanto de nós para nós, como de nós para os outros, fazendo uso dos mais diversos símbolos representativos ou outras formas de demonstração? Estas questões sempre me interessaram como um todo, até porque estudei comunicação e preceitos básicos de semiótica. Olhar, portanto, para o que está por trás de um representação ou entender como é que se forma é , para mim, bastante apetecível. Entender a linguagem como um todo ajuda-nos, por um lado, a entender a arte, a criatividade e, por consequência, também a comunicação, tão essencial para um entendimento mais profundo sobre o que é o ser humano.
Primeiramente, quando ainda não tínhamos o conhecimento que temos hoje acerca do desenvolvimento infantil e sobre a mente dos bebés, pensávamos, erroneamente, que, antes do bebé falar e expressar, claramente, as suas primeiras palavras, não existiam grandes processos, por aí além, a ocorrer na sua mente. Agora sabemos o quão isso está errado e como, antes da pronunciação das primeiras palavras, os bebés já estão a passar e já passaram por vários processos cognitivos – a mente de um bebé está em constante mutação e transformação. Agora compreendemos isso e como esses processos são essenciais. Isso torna-se bastante perceptível quando assistimos a uma sessão de terapia que visa desenvolver a verbalização em pessoas com, por exemplo, necessidades especiais. Não se começa logo por ensinar ou por treinar a pronunciação das palavras como, por exemplo, “vamos lá, agora diz bo-la”. A pessoa tem de ter uma referência do que é uma bola, do que é brincar com uma bola.
Há, portanto, todo um leque de exercícios que podem e devem ser treinados previamente, para treinar e desenvolver a mente para o processo da oralidade, que acaba por ser um processo secundário da nossa mente Nestes casos, por exemplo, temos de ir à base. Antes da linguagem externa, há que desenvolver a nossa linguagem interna responsável por estabelecer a ponte com o nosso meio-ambiente. O desenvolvimento dessa linguagem interna, a nossa consciencialização de nós, do mundo e dos outros, jamais seria possível sem o processo primário da imagem – não confundir com a representação pictórica ou o desenho em si. É neste ponto que devemos recorrer a António Damásio. Segundo o neurocientista o que é uma emoção? A emoção é como que “um concerto de acções que acontecem dentro do corpo.” Já o sentimento é o que se segue, é “a experiência mental que nós temos daquilo que se está a passar no corpo.” Devido a essa experiência mental, é que Damásio reafirma, em “A Estranha Ordem das Coisas”, que a consciência requer imagens, ou que, sem estas, não haveria consciência.
De facto, por isso é que, para quem não consiga desenvolver a fala devido a um qualquer problema cognitivo, funcionam exercícios com cartões que mostram representações das acções do dia-a-dia, como, por exemplo, escovar os dentes ou preparar uma refeição; cartões com a representação dos mais variados objectos, animais ou pessoas e fazer entender se determinado objecto está, por exemplo, em cima ou debaixo de uma mesa ou tentar perceber a função desse objecto; jogos de memória com os cartões, neste sentido para se fazer a associação entre objectos iguais ou objectos diferentes. Os sons também podem ser trabalhados, como tentar descobrir a que acção o som se encontra ligado. Tudo isto são associações e, além disso, associações simbólicas com o que nos rodeia em que, primeiro, a imagem ocupa um lugar preponderante para nos fazer entender o mundo. Estes exercícios, na sua base, são também primordiais, porque nos demonstram como tudo, na sua base, se encontra ligado, “imagem, oralidade, escrita, som”.
A criatividade, então, é necessária e essencial em vários planos, desde o brincar até ao desenvolvimento cognitivo, entre os quais essencial para o ser humano e a humanidade ser quem é, até aos dias de hoje. Desde a imagem, como processo primário, até a verbalização e escrita, processos secundários, até aos mais diversos aspectos da nossa vida que nos ajudam a compreender quem o ser humano é, no seu plano mais abstracto e real. É a comunicação por excelência que nos ajuda a sair do nosso próprio centro e a entendermo-nos e entendermos os outros, mesmo que, por vezes, a tendência seja achar o contrário. Mesmo nas áreas do conhecimento científico-natural, a matemática e a ciência jamais seriam possíveis sem a noção de criatividade. Vemos as áreas do saber como completamente díspares e fragmentadas entre si, mas não tem de ser assim.
O nosso desafio, antes de mais, é repararmos na relação entre as coisas e, uma escola que não seja criativa, impossibilita isso logo à partida. Os grandes clássicos de literatura, por exemplo, ou as histórias que se começaram por dizer oralmente – tenham mais ou menos elementos de fantasia – foram essenciais para fazermos o confronto connosco próprios. Foram os primeiros processos utilizados pelo ser humano (a par da criação dos primeiros grafismo impressos numa caverna) demonstrativos da nossa introspecção e das nossas mundividências interiores. São e sempre serão comunicações que ensinam, tanto numa perspectiva de retratar e dar a conhecer a realidade que vemos, como, num ângulo mais abstracto, como dar a conhecer o quão complexo o ser humano é.
Na próxima semana, o tema da próxima entrevista do ‘Terapia de Divã’ será sobre a criatividade à lente da psicologia. Como é que a criatividade pode auxiliar o desenvolvimento cognitivo? Como é que a criatividade nos faz entender a nós próprios? De que forma a criatividade é uma forma de linguagem ou uma forma de comunicação? São os pontos a explorar. Se o tema te interessa, não percas. Se queres contribuir com alguma pergunta, podes fazê-lo. Até à próxima semana!