“The Act”: o vínculo perverso entre o amor e a doença
Lançada pela Hulu em Março deste ano, a minissérie retrata a história bizarra da jovem Gypsy Rose Blanchard (Joey King) e da sua mãe (interpretada por Patricia Arquette), que integra a primeira de cinco temporadas, cada uma correspondendo a dramas criminais baseados em casos reais. Não foi, no entanto, com a série, que a história se tornou pela primeira vez conhecida pelo público. Em 2017, a história já tinha sido objecto do documentário “Mommy Dead and Dearest”, que contou com a participação da jornalista Michelle Dean, uma das criadoras de The Act (juntamente com Nick Antosca). A razão de ser de tanto alvoroço com esta relação entre mãe e filha justifica-se pelas peculiaridades macabras que revestiam um afecto maternal de aparente ternura e cumplicidade, intrinsecamente infectado pelos distúrbios de uma mãe.
O brutal assassínio de Dee Dee Blanchard (Patricia Arquette), mãe de Gypsy, foi um momento de viragem na vida de Gypsy Rose e o início do primeiro dos oito episódios que compõem a série. Depois de conhecido o destino desta mãe extremosa, a história foca-se no percurso que levou ao ponto de ruptura. A narrativa situa-se essencialmente no período compreendido entre 2008 e 2015, altura em que Dee Dee Blanchard e a filha Gypsy se mudam para uma casa construída especialmente para elas pela Habitat for Humanity. A caridade da qual dependiam para viver relacionava-se com o estado de saúde de Gipsy, que desde tenra idade havia sido diagnosticada com uma série de patologias que não só a impediam de viver e sentir-se como uma criança normal, como também condicionavam a mãe a um constante estado de vigilância e total dedicação à saúde da filha.
Sendo esta a premissa inicial, rapidamente se desmonta num conto de terror sobre doença mental, abusos infantis e homicídio. Não tarda a que o espectador compreenda estar perante uma mãe cujo amor incondicional pela filha é levado ao limite e corrompido pelas tortuosidades de uma enfermidade que transforma o cuidador no perpetrador do mal. É paradoxal, pois não pomos em causa o amor de Dee Dee pela filha e ao mesmo tempo olhamos para esta relação com frustração, repulsa e impotência. É um sentimento de desconforto que a série habilidosamente nos faz sentir ao mostrar a completa perversão do elo mais puro entre o ser humano. É-nos dado o acesso à mente desta figura e às várias nuances do distúrbio, permitindo-nos, dentro do possível, percorrer os seus desígnios. É de realçar a poderosa performance com que Patricia Arquette nos brinda no exercício desafiante que é descortinar esta figura materna. Desde o sotaque à caracterização até à escalada vertiginosa entre a afetuosidade e a malevolência, a actriz consegue seduzir para além do desdém que não podemos deixar de nutrir pela sua personagem.
Do outro lado da barricada temos Gipsy, vítima de um controlo físico e psicológico desmesurado que com o passar dos anos se amplifica num isolamento profundo, tortura psicológica e maus tratos, coincidindo paralelamente com o declínio da saúde tanto física como mental da mãe. O dia-a-dia do horror que é a intimidade de mãe e filha desta dupla é engenhosamente demonstrado através da personagem de Gipsy. É retratado com talento e competência a frustração de uma criança a quem são negadas as alegrias básicas da infância e impostos restringimentos de todos os níveis, desde ser forçada a alimentar-se via tubo digestivo, a não poder andar ou ter qualquer controlo sobre o seu corpo e aparência. É com o amadurecimento próprio da idade que se tornam mais notórias as várias imprecisões do discurso da mãe e começam a nascer dúvidas e revoltas. A contradição e naturalidade com que Gipsy define as suas passadas fazem estranhamente sentido dentro da nossa incapacidade de as compreender. Enquanto vai alinhando na farsa criada pela mãe e obedecendo a todas as suas imposições, simultaneamente inicia uma viagem de autodescoberta e busca pela independência, sem nunca amar ou odiar totalmente a mãe.
Se Nick (um namorado virtual com quem Gipsy ingressa numa exploração sexual) é uma forte adição a esta dupla que por si só faz a série, já outras personagens secundárias como as suas vizinhas (uma mãe e filha com uma relação tumultuosa) não se destacam para além do razoável, permanecendo na sombra de diálogos fáceis e desempenhos banais.
De contrastes é feita esta história, onde o abuso e o sofrimento revestem as cores da ilusão própria de universos incautos de donzelas e heróis que envergam a promessa de um final feliz. O espectador, esse, assiste, inquieto, como se de um cúmplice silencioso se tratasse, a este relato que de conto de fadas se desfaz em tragédia.