‘The Other Side of the Wind’ e o documentário irmão fecham o mito de Orson Welles
Não passou em Cannes, passa em Veneza. Tem sido assim neste festival que abriu as portas para a Netflix, que assegurou a conclusão do ambicionado (e sempre adiado) topus de Orson Welles, The Other Side of The Wind, bem como o documentário de Morgan Neville, They’ll Love Me When I’m Dead, e que é muito mais do que uma espécie de making of do filme, porque nos atualiza uma série de momentos de Welles muito pouco vistos, ou mesmo inéditos.
The greatest films are movies made of devine accidents, citará Orson Welles a certa altura. Ele que será quase tão famoso pelas suas obras-primas como pelos filmes que não concluiu ou não chegou a estrear em sala. Sobretudo depois de A Sede do Mal, que os produtores acharam “horrível”. E em particular, o venerado The Other Side Of The Wind, iniciado em 1970, sobre os últimos momentos de vida de um realizador.
Desde que a Netflix decidiu assegurar a conclusão do projecto que, naturalmente, a curiosidade renasceu e foi mesmo dado como certo em Cannes, tal como The’ll Love Me When I’m Dead, narrado por Peter Cummings, revela imagens de arquivo raras sobre essa derradeira rodagem, embora acabando por não chegar a um entendimento relativamente à política de exibição em sala. Este duo valioso acaba por ser assim mais um dos pontos fortes de Veneza e um braço da robusta presença da Netflix no festival italiano.
Na verdade, pode mesmo dizer-se que neste caso os dois filmes acabam por ser mais do que a soma das duas partes, já que o documentário aumenta em muito a descoberta deste filme esquecido. Já agora, expliquemos o título, ou ambos os títulos. Desde logo, They’ll Love Me When I’m Dead ilustra afrase atribuída a Welles sublinhando a amargura de não ter podido trabalhar com a liberdade desejada e, sobretudo, por ter visto parte da sua obra amputada, editada por outros ou, simplesmente, privada de apoios para ver a luz dos projectores. Tal como The Other Side Of The Wind será a forma como a companheira de Welles na época, a croata Oja Kodar, que vimos também em F For Fake, o famoso e genial documentário de 1973, sobre a ilusão do cinema. Segundo ela, a figura imensa de Orson era tão majestosa como o próprio vento, mas poucos como ela conheceriam esse “outro lado do vento”.
O que é curioso é perceber como este projecto começou, a partir da ousadia do fotógrafo Gary Graver que se insinuou a Orson Welles no hotel Beverly Hills, em Los Angeles, onde se encontrava, acabando mesmo por ser aceite como cameraman para esse projecto. “Esta é a segunda vez que um cameraman me contacta directamente. O outro foi o Gregg Tolland”, famoso DP de Citizen Kane e dos famosos efeitos de profundidade de campo.
Juntos irão dar corpo a essas imagens em estilo docudrama, muito nouvelle vague, muito Antonioni, em que vemos um John Huston a dar corpo a um realizador, Jake Hannaford, à procura de finalizar o seu último filme… E Peter Bogdanovich a fazer de realizador, amigo e anfitrião de Welles e Oja durante vários meses. Muita gente passa pelo filme. Realizadores, vemos Claude Chabrol, Paul Mazurski, actores e até a crítica Pauline Kael a fazer o seu papel de fazer as perguntas difíceis ao realizador.
Mas essa é apenas uma parte, filmada a preto e branco, pois há o tal filme que Hannaford deseja concluir, a cores, em que a escultural Oja Kodar inunda a tela num exercício de liberdade e sexualidade. Na verdade, uma das sequências mais fortes é uma longa cena de sexo de mais de dez minutos de Oja com dois jovens dentro de um carro. Isto para além de inúmeras cenas da jovem a passear nua num deserto vermelho.
Será O Outro Lado do Vento uma explosão do desejo de Orson Welles?, pergunta-se no documentário de Neville. Talvez. Será que esse era para ser um filme em permanente construção? Talvez. Será que Welles saberia que parar de filmar seria morrer? Talvez. Tal como Manoel de Oliveira.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt