“The Pale Blue Eye”, de Scott Cooper: as veias góticas de Edgar Allan Poe
Na periferia florestal e amantada pelo nevoso Outubro de 1830, a Academia Militar de West Point, no estado de Nova Iorque, é um fresco palco de assassinato. O súbito enforcamento dum cadete, com detalhes macabros e invulgares, motiva o corpo docente a contratar o detetive reformado Augustus Landor.
Interpretado por Christian Bale, o investigador da vez é um alcoólico em recuperação, viúvo inconsolável e pai duma jovem desaparecida. Com um olhar astuto e penetrante, percorre os confins do local do crime, com pouco mais que depoimentos inconclusivos, o instrumento da matança e elogios descomedidos dos empregadores. Algo perpassa pela neve lúgubre. Aproxima-se um corpo esguio e elegante, com insuficiente destreza para passar despercebido. Cheio de convicção, um cadete pretende elucidar o inspetor sobre o autor do crime. “O homem de que você está à procura é um poeta”, diz.
O que Landor não imagina é que também este jovem militar é um hábil das letras e das emoções, em lento apego a um caso policial que o transformaria num dos escritores mais louvados e influentes dos Estados Unidos da América. Baseado no romance homónimo de Louis Bayard, o filme “The Pale Blue Eye” destaca o assombramento de homens e mulheres, convidados a tecer observações sobre a morte, essa inconveniente visitante, e as mazelas de quem dela procura se desmarcar ou abeirar. Original da Netflix, datilografa-se com as veias góticas de Edgar Allan Poe, neste whodunnit que propõe uma história de origem do aclamado poeta e contista, interpretado por Harry Melling.
Com uma reconstrução histórica artística de se tirar o chapéu, desde pomposos fatos de cerimónia à loiça de barro de tascas alvoraçadas, o último trabalho de Scott Cooper é consentâneo com a melancolia acabrunhada doutros seus títulos, como “Out of the Furnace” (2013) e “Hostiles” (2017), ambos protagonizados por Christian Bale. Todavia, uma simples (e consciente) escolha criativa poderá dificultar a imersão do público nesta atmosfera, que, apesar de várias munições literárias — os diálogos viajam com alguma liberdade —, adota uma abordagem realista.
Maior parte do elenco de “The Pale Blue Eye” é britânico. Por desleixo do mesmo ou da direção de Cooper, não faz sentido ter-se descurado o sotaque americano de praticamente todas as personagens. Sendo a qualidade do trabalho de Christian Bale, nascido no País de Gales, tão expectável quanto o nascer do Sol, tal problema não se verifica. Verifica-se, então, quando se afastam ouvidos para dialetos doutrem, nomeadamente de Lucy Boynton, Simon McBurney e Timothy Spall — os dois últimos mal resistem perante a irrelevância que lhes dá o papel. Sublinhe-se que, para irrelevância e um brutal desperdício de talento, aliás, basta referir a presença injustiçada de Charlotte Gainsbourg, conhecida por colaborar com Lars von Trier.
Felizmente, o londrino Toby Jones, com uma admirável experiência no cinema e na televisão, exibe um sotaque americano perfeitamente funcional, além de uma interpretação, como é comum, confiante e prudente.
O já mencionado Bale, mesmo repetindo a postura intimidatória que adotou em “Hostiles” (desta vez, com maior leveza), demonstra com curtos e sisudos gestos, reações e olhares o porquê de se tratar de um dos melhores atores da sua geração. A personagem é enredadora e complexa, mas não deixa de ser frustrante que não tenham sido exploradas a fundo determinadas fontes da sua tormenta pessoal, além de as respetivas virtudes serem enaltecidas por diálogos expositivos. Um método preguiçoso: aquando do rescaldo do homicídio, os capitães e coronéis leem em voz alta o currículo de Landor, na presença do próprio, com o único intuito de informar o espetador, ao invés de lhe mostrar.
A coroar o elenco está Harry Melling, que tem vindo a quebrar os limites dum talento eclético. Após encarnar Dudley Dursley, o primo insolente e mimado de Harry Potter, o ator já integrou projetos de grande renome, como o western “The Ballad of Buster Scruggs” (2018), dos Irmãos Coen, ou a minissérie “The Queen’s Gambit” (2020), criada por Scott Frank e Allan Scott. Agora, na pele dum dotado e apaixonado Edgar Allan Poe, preenche o núcleo investigativo e emocional da história, que se revela um sentido apreço, por parte de Cooper, pela obra e personalidade do escritor. Pena que Melling, face às origens virginianas de Poe, em raro ou nenhum instante adote o sotaque correto.
Sobre o mistério propriamente dito, como se a premissa não bastasse, é prevista a atuação violenta de forças sinistras e do oculto, potenciando uma ficção que poderia muito bem ter inspirado o trabalho dum jovem Edgar Allan. Colado a defeitos familiares da estrutura de “quem matou quem?”, o filme depende de algumas conveniências e coincidências, que poderão, apesar de tudo, ser relativizadas conforme o visionamento de cada espetador.
Subjacente a contornos narrativos questionáveis e um ritmo algo moroso, o filme dispõe da fotografia gelada e austera do japonês Masanobu Takayanagi, que domina a iluminação de cenas interiores e noturnas e desenha enquadramentos que deixariam John Ford orgulhoso. Por sua vez, a sublime banda sonora do canadiano Howard Shore, conhecido por “The Silence of the Lambs” (1991) e pela trilogia “The Lord of the Rings” (2001-2003), eleva a carga dramática de diversas cenas, de tão melodiosa como arrepiante.
Distante do apogeu de Scott Cooper, “The Pale Blue Eye” pode orgulhar-se de numerar mais acertos do que erros. É uma obra intensa e empenhada, que alude à natureza de crimes horrendos por decifrar e à relação do ser humano com a própria escassez e com quem a Morte lhe roubara.