“The Two Popes”, de Fernando Meirelles, procura humanizar o Vaticano aos olhos do presente
Do Vaticano para o mundo. Fernando Meirelles é o portador desta mensagem cinematográfica, realizando “Two Popes”, um filme já bem quisto nas categorias dos Globos de Ouro e, certamente, que constará nas listas dos galardões dos Óscares. O enredo passa-se no ano de 2012 e é composto por um pedido do então cardeal argentino, de seu nome Jorge Bergoglio, endereçado ao Papa de então, Bento XVI, no qual se queria reunir com o Santo Padre em Roma, no desejo de renunciar ao seu cargo para se reformar. A solicitação é respondida pela figura pontificial e, com bilhete de avião comprado ainda antes, Bergoglio viaja a Roma e reúne-se com o Papa.
O filme viaja, assim, entre estas duas figuras. Uma, mais conservadora e ligada à tradição ocidental, com uma formação ortodoxa, outra com o rasgo latino, que a Argentina transporta no seu ADN, mas também de costumes mais simples e informais. Cada um com o seu lastro, com a sua formação, com o seu percurso ao serviço de Deus. São duas mundividências que entram em choque, que entram em rota de colisão, num caminho que já tinha sido provocado após a morte de João Paulo II no ano de 2005. Bento XVI, então Joseph Ratzinger, e Jorge Bergoglio foram dois dos cardeais considerados para a sucessão, sendo que Ratzinger acabaria por conseguir os 77 votos e por assumir o cargo deixado vacante pelo Papa polaco.
Nada que se possa falar deste filme pode ser considerado spoiler, apesar de grande parte das conversas serem, substancialmente, assumidas a partir das convicções de Bento e de Francisco. Isto porque corresponde à vida real, ao mediatismo que ambas as figuras tiveram no quotidiano, que se pode perceber nos noticiários de há uns anos atrás, e mesmo com uma pequena pesquisa na Internet sobre a vida e o percurso de ambos. No entanto, aquilo que este filme traz de novo é a sua expressão num caminho onde aqueles que, desencantados ou desinteressados, se afastaram da Igreja podem reencontrar as lides da Igreja Católica. Não obstante este desligar da sociedade em relação a essa realidade, a verdade é que ela permanece e persevera, sustentada no seu legado no seu enorme peso político, social, económico e cultural que as aulas de História não deixam esquecer. No centro, claro está, a figura de Deus, mais ou menos honrada no que se foi fazendo. Porém, esse é um debate que não deve ser feito aqui, mas sim suscitado naqueles que vêem o filme e que o interpretam com olhos de presente.
Não se pode escamotear deste filme a presença de dois ilustres atores a assumir os papéis de Bento e de Francisco. Do lado de Bento, um prestigiadíssimo e imponente Sir Anthony Hopkins, com uma representação firme e fria, fiel aos ares germânicos. Do lado de Francisco, é Jonathan Pryce, que consegue captar o espírito de humanidade, o espanhol e o calor humano do atual papa; em ambos, uma dualidade entre a distância e a proximidade que, gradualmente, se vai denotando. A relação que estabelecem revela, desde logo, também a química entre os dois atores, que conseguem, com o apoio de uma bela e limpa fotografia, e de um som tanto etéreo como mundano, captar e exprimir. Os diálogos que estabelecem mostram precisamente o choque de mentalidades e as diferenças que a presença de Deus pode assumir em cada um, por mais que a fé neste seja incalculável. Mais do que os cargos que assumem, o lento revelar da sua humanidade é a premissa que revela a subtileza e a preciosidade deste trabalho de Fernando Meirelles. Isto não podia acontecer sem o recurso ao espaço – desde a residência de descanso de Bento XVI até, em pelo Vaticano, à sala onde, em conclave, em caso de necessidade, é nomeado um novo pontífice (conhecida como Sala das Lágrimas).
Louve-se, desde já, o esforço meritório da recriação dos cenários da Capela Sistina, onde grande parte do filme se desenrola. Este processo foi orientado pelo historiador Enrico Bruschini e orquestrado pelo designer de produção Mark Tildesley. As próprias pinturas, em especial as de Miguel Ângelo, foram decalcadas através de uma técnica em que a pintura seria registada em filme e transferida para uma superfície, coberta por uma substância que sugasse a pintura para o gesso. Foram contratados alguns artistas locais para pintar alguns quadros correspondentes a um terço do tamanho, com a informática a entrar no fotografar, ampliar e imprimir para essa técnica de “tatuagem”. O diretor artístico, Stefano Maria Ortolani, mencionou que foi um processo que demorou oito semanas a ser completo.
De igual modo, a importância do tempo, em especial enquanto se percebe o percurso de Bergoglio. Mais do que outra coisa, a perceção de que não se trata de alguém perfeito, mas de alguém que errou e que nem sempre esteve do lado bom da história. Revelam-se, também, alguns aspetos da intimidade destes dois ilustres homens da Igreja, que entram em harmonia na partilha que vão estabelecendo. É uma revelação que mostra onde está, de facto, a presença de Deus. Na partilha entre dois seres humanos, daquilo que acreditam que é o melhor e mais puro de si, naquilo em que o encontram. Seja no mais mundano das coisas, seja no menos previsível dessas mesmas, sempre com algum humor à mistura (os próprios créditos são um exemplo bastante concreto daquilo a que o filme se propôs). O realizador brasileiro faz um esforço – que acaba por ser mais natural do que pré-estabelecido – de que o espectador perceba que os papas são, afinal de contas, seres humanos, que possuem fragilidades. São essas vulnerabilidades que levam a que Deus (ou a consciência ou qualquer ente transcendental considerado como um regulador moral) intervenha e afete as decisões tomadas.
“The Two Popes” é um filme de proximidade, de intimidade. Apesar de todo o lustre, de toda a pompa e de todos os formalismos que o Vaticano apresenta, apesar do vácuo deixado pelo vazio da humanidade em torno da Igreja, Fernando Meirelles quis humanizar a Igreja. Fazê-la mais próxima, mais calorosa, no sentido em que a sua moralidade nem sempre é a mais polida e harmoniosa, nem que os Papas e seus cardeais são figuras que estão num trono com uma vida sem prazeres mundanos e repletas de elitismos. A Igreja é feita de representantes que, eleitos ou não por Deus, são humanos, à imagem dos seus fiéis, à imagem dos seus detratores, à imagem daqueles que lhe são indiferentes. A interpretação subtil e irrepreensível de Hopkins e de Pryce ajudam a perceber essa abrangência daquilo que pode ser a fé, daquilo que pode ser o ser humano. Em oração, em reflexão, em meditação, descobrem-se mais linhas de intimidade e de proximidade que de indiferença e de descrença. “The Two Popes” tem esse condão. Com o poder da palavra e da experiência, a força de harmonizar e de humanizar.