Todas as sereias têm um rabo de peixe
No sábado passado, acordei com a notícia de que a administração do Teatro Micaelense pondera colocar à venda em haste pública o Cine-Teatro Miramar, em Rabo de Peixe, na Ilha de São Miguel, nos Açores.
O Cine-Teatro Miramar é a casa da Escola de Música de Rabo de Peixe, naquela vila piscatória. Casa aqui quer dizer lugar de aprendizagem, de ensaio e de concerto, espaço de educação e de encontro intergeracional, o coração de um dos mais urgentes, inspiradores e incríveis — haja adjetivos —, projetos socioculturais do país inteiro. A Escola precisa desta casa!
Mas vai além disso. O Miramar é da comunidade de Rabo de Peixe (e de toda a ilha). É um espaço de ocupação de tempos livres, de consulta de internet, de projeção de cinema e uma verdadeira porta de entrada da cultura do mundo na ilha. É, de resto, em São Miguel, um dos poucos espaços culturais comunitários de proximidade que funciona e tem uma função muito clara. A vila e a ilha precisam desta casa!
Foi desta escola que saíu o saxofonista Luis Senra. É nesta escola que ensinam professores incríveis e incansáveis como a Gianna de Toni, o Cristóvão Ferreira, o Rodrigo Reis, o Carlos Mendes, o Licínio Moura, a Sílvia Oliveira. Eles ensinam jazz, “soundpainting”, ensinam a tocar em conjunto, e a valorizar cada elemento e contribuição. Mas são muito mais do que isso. Eles mantêm de pé este sonho e urgência. Eles tomam de conta de dezenas de crianças, pagam almoços quando é preciso, vão buscar a casa, vão levar a casa, e cuidam, cuidam, cuidam.
Em quase uma década de festival Tremor, o Cine-Teatro Miramar tem sido uma das casas-chave para preparar e receber o festival. A Escola de Música de Rabo de Peixe tornou-se um dos cabeças de cartaz indiscutíveis do festival. Porquê? Porque aqui o Tremor encontrou sempre o afecto, a força, o talento e o desafio que permite que práticas artísticas e culturais possam ser transformadoras. AQUI O TREMOR ENCONTROU O FUTURO A BROTAR TODOS OS ANOS. Das colaborações com os Za!, Frankão O Gringo Sou Eu, ondamarela, a ASISM — Associação de Surdos da Ilha de São Miguel (ASISM Açores), Peter Evans, e Rodrigo Amado, até aos concertos em nome próprio, estão na minha pele as magníficas performances no estaleiro de barcos de Rabo de Peixe, no Teatro Micaelense, no Auditório Luís de Camões, na Igreja do Colégio, em Ponta Delgada. Em 2022, a Escola de Música de Rabo de Peixe tornou-se a primeira banda dos Açores a tocar no Rock in Rio, juntamente com músicos da ilha, elementos da ASISM Açores, e sob a batuta do coletivo vimaranense ondamarela. Quem esteve lá sabe como foi emocionante e importante. Quem esteve lá testemunhou o início de uma pequena grande revolução no que diz respeito à visibilidade de projetos artísticos de inclusão social e de participação comunitária. Essa história correu o país e a Europa.
O Cine-Teatro Miramar foi construído com fundos comunitários. Vendê-lo é fazer negócio de um investimento que foi feito para toda a gente. A ideia de venda deste espaço é um atentado à comunidade de Rabo de Peixe, de São Miguel e dos Açores. Tirar este teatro a esta ilha e vendê-lo em haste pública é entregá-lo a um destino incerto, a um vazio, a um mundo sem horizonte. Tirar este teatro a esta ilha é tirar este teatro ao país inteiro.
A Escola de Música de Rabo de Peixe surge no contexto do serviço educativo do Teatro Micaelense, então denominada como Orquestra Oi Jazz. Entretanto, o projeto tornou-se uma associação cultural sem fins lucrativos, fruto do trabalho incansável de inúmeras pessoas, ficando com o espaço para o desenvolvimento das suas várias atividades — as aulas, os ensaios, as masterclasses e os concertos.
Se o problema agora é dinheiro e despesa, não faltarão formas de fazer valer, render e pagar este teatro, e já agora, de o valorizar, e valorizar à séria o trabalho que é feito ali dentro, e de torná-lo ainda mais pujante do que já é. E basta de notícias tristes sobre Rabo de Peixe, é nossa responsabilidade mudar a narrativa já e todos os dias. A notícia devia ser: “ Cine-Teatro Miramar será restaurado” ou “O Governo dos Açores reconhece o trabalho de mérito da Escola de Rabo de Peixe e aumenta o seu financiamento e condições de funcionamento”. Este projeto é merecedor de uma medalha de mérito da região, não de um despejo.
Acredito na razoabilidade, bom senso e responsabilidade cívica da administração do Teatro Micaelense, do Governo dos Açores e da Câmara Municipal Ribeira Grande, onde fica situada a vila de Rabo de Peixe. E acredito também em nós, sociedade civil, para defender com garras e dentes, este lugar de nós todos e do futuro. Dediquemos-lhe a nossa atenção e cuidado, erguendo a nossa voz, e assinando o manifesto — 𝗡𝗮̃𝗼 𝗾𝘂𝗲𝗿𝗲𝗺𝗼𝘀 𝗾𝘂𝗲 𝗼 𝗧𝗲𝗮𝘁𝗿𝗼 𝗠𝗶𝗿𝗮𝗺𝗮𝗿 𝘀𝗲𝗷𝗮 𝗮𝗹𝗶𝗲𝗻𝗮𝗱𝗼 𝗱𝗼 𝗽𝗮𝘁𝗿𝗶𝗺𝗼́𝗻𝗶𝗼 𝗱𝗮 𝗥𝗲𝗴𝗶𝗮̃𝗼 𝗔𝘂𝘁𝗼́𝗻𝗼𝗺𝗮 𝗱𝗼𝘀 𝗔𝗰̧𝗼𝗿𝗲𝘀 . Um dia quem vier a Rabo de Peixe vai poder ser recebido com música, e comprovar que, sim, Todas as Sereias têm um Rabo de Peixe, porque naquela vila se criam horizontes melhores de possibilidade, e se trabalha o sentido de pertença, o orgulho e a mundividência.
Crónica de António Pedro Lopes.
Antonio Pedro Lopes nasceu em Ponta Delgada em 1981. É curador, programador cultural e artista, criando projetos culturais e artísticos em Portugal, na Europa e nos Estados Unidos. Dirigiu e co-fundou o Tremor Festival com a Yuzin e a Lovers&Lollypops. Em 2020-2022 foi diretor artístico da candidatura finalista Ponta Delgada – Azores 2027 a Capital Europeia da Cultura.