Trabalho, trabalho, trabalho
A sociedade assenta em vários princípios que interagem e moldam o indivíduo que dela faz parte. Talvez o trabalho represente uma das noções mais basilares da nossa vivência conjunta, tornando-se aquilo com que cada um contribuiu, para justificar o que dos outros recebe. A forma como se o encara pode ser distinta, mas é transversal a todos os tempos e sociedades que as pessoas que o desempenham passem nele uma fatia bastante grande da sua vida.
A Saúde Mental, sendo um estado no qual o indivíduo realiza o seu potencial e contribui para a sua comunidade, tem em si uma relação directa com a questão do trabalho. Na verdade, influenciam-se mutuamente, com o défice de saúde a impactar o trabalho e com o trabalho a poder afectar o estado de saúde dos trabalhadores. Hoje vem-se falando cada vez mais do burnout e as empresas começam a estar atentas a esta condição. De acordo com as classificações diagnósticas em Psiquiatria, o burnout não é uma doença, mas antes um fenómeno ocupacional. Isto quer dizer que preenche três critérios ligados ao trabalho: sentimento de diminuição de energia ou exaustão; distanciamento mental e sentimentos negativos em relação ao trabalho; diminuição da eficiência profissional. Isto não quer dizer que se exclua a presença de doença psiquiátrica. Apenas que o burnout o não é, ainda que exista em muitos casos sobreposição com sintomas depressivos, ansiosos ou de insónia, ou mesmo com perturbações psiquiátricas ligadas a estes sintomas.
Há diferentes motivos para que se desenvolva um burnout — são relevantes as condições de trabalho, mas também a resiliência de cada um para o tipo de agressão que o trabalho lhe causa — apesar disso, ainda que haja estudos que apontam diferentes números, podemos assumir que limitar as horas de trabalho a um máximo de 40 por semana protege o indivíduo e trabalhar acima das 60 horas semanais aumenta de forma marcada o risco de se desenvolver esta condição. Ao escrever isto penso no quanto a nossa cultura de trabalho ainda é errada. Focamo-nos pouco no valor acrescentado e muito nas horas passadas a trabalhar — todos temos amigos que se orgulham de fazer horas incontáveis e que utilizam o tempo que despendem no trabalho como norma, desvalorizando os que vão utilizando o seu tempo para outras actividades. A que custo?
O burnout tem um impacto pessoal para o trabalhador e económico tanto para o trabalhador quanto para o empregador: pode ser um factor de stress que produza agressão suficiente para que se desenvolva uma perturbação psiquiátrica, baixar a produção e prejudicar as relações interpessoais. Estas questões fazem com que tanto empresas quanto trabalhadores devam preocupar-se com o tema. Compensará a todos os intervenientes que se invista na sua prevenção e sinalização precoce.
Mais ainda, existe também a questão do trabalho por turnos, que é essencial para o nosso funcionamento enquanto sociedade, mas que é disruptivo para o ritmo circadiano de quem o pratica. São inúmeros os estudos que relacionam o trabalho por turnos contínuo, ao longo de anos, com um aumento de mortalidade por várias causas — desde as cardiovasculares às oncológicas. Também aqui deveremos utilizar a ciência para procurar os sistemas mais equilibrados de gestão do esforço, para preservar a saúde dos trabalhadores. A falta desse planeamento tem custos humanos e financeiros.
Hoje é obrigatório falar também do teletrabalho, que chegou como inevitabilidade e virá para (parcialmente) ficar. Ainda que no estudo que realizei com uma equipa para avaliar sintomas psicológicos durante o primeiro confinamento motivado pela COVID-19 as pessoas em teletrabalho apresentassem menos sintomas, há estudos que apontam no sentido contrário. O que vem sendo a minha impressão clínica (esta não baseada em quaisquer publicações científicas) é que as pessoas inicialmente se sentiram protegidas da infecção, mas que neste momento se encontram cansadas de permanecer em casa. Apesar de tudo, representando uma porção tão grande da nossa vida, o trabalho torna-se também um meio de interacção, de dinâmicas sociais e de rotina. Tanto nas consultas como nos meus grupos de amigos, as pessoas pedem para regressar ao escritório. Diria que a solução passará por dar liberdade ao trabalhador, tanto quanto possível. Ao escolher, tendencialmente as pessoas irão para onde se sintam mais confortáveis, com menos stress. Isso será positivo para a sua saúde mental.
Termino, referindo uma questão muitas vezes menosprezada, mas que acredito tem muita importância no impacto cumulativo na saúde mental dos trabalhadores — os requisitos técnicos de arquitectura. Um escritório bem desenhado, com luz natural abundante e um pé direito confortável fará toda a diferença no conforto de um trabalhador (também aqui se pode questionar as condições para teletrabalho).
Sendo a nossa saúde mental um produto das nossas interações, das reacções que lhes temos e da realização do nosso potencial em sociedade, ela encontrará sempre relação com o trabalho, ao qual dedicamos uma fatia importante da nossa vida.