Três destaques do Doclisboa para revisitar: “Dreaming Walls”, “O que podem as Palavras” e “Objetos de Luz”
Terminou, no passado fim-de-semana, a 20.ª edição do Doclisboa, festival internacional de cinema, que reúne vozes de todo o mundo na capital portuguesa. O evento contou com 281 exibições distribuídas em seis secções principais, duas retrospetivas e sessões de abertura e encerramento.
Existe uma certa rotina ao frequentar um festival de cinema como o Doclisboa, um protocolo, uma etiqueta partilhada entre os espectadores que sabem levantar-se apenas e somente após o término dos créditos, um pouco à semelhança dos ouvintes de música clássica, que aguardam até ao final dos movimentos para aplaudir. Sabemos que não é uma obrigatoriedade, é antes um consenso quase telepático, uma questão de respeito, consideração e tributo aos criadores e um momento de reflexão e homenagem ao que foi contemplado durante a sessão. Este é um espírito partilhado entre todos os festivais da sétima-arte, mas particularmente sentido no Doclisboa, um evento onde colecionamos fragmentos de, como diria Godard, “verdade a 24 vezes por segundo” e onde se destaca a experiência, partilha, diálogo e uma paixão comum, de ligação direta entre o globo ocular e o espírito cinéfilo.
De entre muitas e brilhantes exibições, aqui destaco apenas três obras que me marcaram nesta edição do festival.
“Dreaming Walls”, filme de Amélie van Elmbt e Maya Duverdier
É um destaque óbvio, mas indispensável. “Dreaming Walls”, realizado por Amélie van Elmbt e Maya Duverdier e produzido por Martin Scorcese, é uma história de fantasmas não-aterradores, espíritos artísticos que assombram, até aos dias de hoje, o mítico Hotel Chelsea, edifício icónico da contracultura norte-americana dos anos 60 por onde passaram nomes como Bob Dylan, Janis Joplin, Charles Bukowski, Patti Smith, Leonard Cohen e Iggy Pop.
O documentário constitui um registo inédito, e provavelmente final, do quotidiano de alguns dos seus atuais habitantes, que percorrem os corredores do velho hotel nova iorquino durante o seu processo de renovação. Enquanto alguns dos residentes aguardam ansiosamente o término das construções, outros resistem à renovação que acontece independentemente da sua vontade. O filme procura incidir uma luz sobre as nuances do processo de gentrificação, tentando mostrar algumas das suas implicações em casos individuais.
Existe algo no Chelsea de verdadeiramente transcendente e o documentário demonstra-o bem, quando até os espíritos mais céticos acabam por ceder ao apelo romântico que o filme apresenta. Cabe a cada um dos espectadores decidir se acredita nas palavras de Merle Lister, coreografa, bailarina e uma das protagonistas centrais da película, ao referir, nostálgica e amistosamente, que aquele é um lugar, em certo modo, “assombrado”, não por almas penadas que circulam perdidas em busca de um recetáculo, mas antes na forma de inspiração.
As cenas e entrevistas são todas elas cuidadas num formato original, como se fossemos convidados a entrar no apartamento de cada um dos inquilinos e acabássemos por ficar para uma boa conversa.
Acredito que, acima de tudo, Dreaming Walls é um apelo à valorização cultural, a um amor incondicional pelas artes e a um espírito geracional que tem vindo a renovar-se e não deve nunca cair em esquecimento, mesmo que as paredes ruam.
“O que podem as Palavras”, filme de Luísa Marinho e Luísa Sequeira
O processo de criação de “O que podem as Palavras” teve início há cerca de 10 anos, mas o documentário não poderia surgir em data mais atual, naquele que é, talvez, o período áureo da terceira vaga feminista.
O filme fala-nos sobre o processo de escrita de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, conhecidas por “Três Marias”, enquanto redigiam, no ano de 1971, “Novas Cartas Portuguesas”, a célebre (na altura não tão célebre assim) libelle contra o Estado Novo. As autoras foram levadas a tribunal, no entanto, graças aos adiantamentos da sentença e à revolução de abril, nunca enfrentaram condenação e mesmo sob pressão do interrogatório, nenhuma das autoras delatou a outra e “Novas Cartas Portuguesas” permanece, até hoje, uma obra a três mãos.
No painel que sucedeu a exibição do filme, as realizadoras Luísa Marinho e Luísa Sequeira confessaram ter enfrentado bastantes dificuldades com os apoios ao audiovisual, não só numa questão de orçamento, como também em arranjar imagens de arquivo para “pintar” o documentário, exemplo disso, é uma das filmagens fornecidas pelo Arquivo da RTP da Reunião do Movimento de Libertação das Mulheres que se encontra registada sem som.
O filme, à semelhança da obra “Novas Cartas Portuguesas”, dispensa ser catalogado como uma obra de reivindicação feminista, apesar de o ser, não é necessário dizê-lo, é antes fundamental compreendê-lo, em toda a sua estrutura. Através das entrevistas, conduzidas por Ana Luísa Amaral, a dupla de realizadoras decide mostrar-nos os detalhes de um processo de escrita inédito, a três, um ato de coragem, brotado de um espírito comum, partilhado por três autoras absolutamente incomparáveis. O apoio mútuo, o feminismo, a sororidade e a camaradagem transparecem não somente nas linhas plasmadas nas “Novas Cartas”, mas também naquilo que o livro veio a representar. Compreender o processo de escrita envolvido na redação das “Novas Cartas Portuguesas”, é, a meu entender, uma das abordagens mais interessantes e pertinentes para realmente compreender as implicações políticas e sociais da obra, seja a nível nacional ou internacional.
“O que Podem as Palavras” foi o vencedor do O Prémio do Público – Prémio Jornal Público para Melhor Filme Português.
“Objetos de Luz”, filme de Acácio de Almeida e Marie Carré (ler entrevista)
“Antes não havia nada, depois fiat lux” e da luz nasceu o cinema. Em “Objetos de Luz” somos transportados de plano em plano entre alguns dos 150 filmes nos quais Acácio de Almeida foi realizador de fotografia, alguns realizados por figuras como João César Monteiro, António Reis e Teresa Villaverde.
A todo o potencial estudante de cinema e audiovisual, que procure aprofundar os conhecimentos e práticas do ofício, recomendo vivamente a que se familiarize com o conceito de documentário experimental e que, a partir daí, procure distorcer tanto quanto possível este meio, enfrente as barreiras do som, quebre as convenções de enquadramento e desafie noções como continuidade e linearidade narrativa. Não se trata de produzir algo pretensioso ou inacessível, trata-se de conhecer as fronteiras de um meio, de exceder as potencialidades da arte cinematográfica, de conhecer as raízes e os mecanismos que tornam o cinema um meio tão singular. Acredito que tenha sido essa a intenção de Acácio de Almeida e Marie Carré, que apesar dos longos e prósperos anos de carreira, redescobrem a sua voz e o seu papel no cinema nacional.
“Objetos de Luz” fornece uma autêntica meditação sobre algumas das interrogações metafísicas mais pertinentes, constantes e primárias na vida. Para citar Orson Wells, em “F for Fake”, “Ladies and gentlmentan, by way of introduction: this is a film about trickery”. À semelhança da obra de Wells, também Objetos de Luz constitui um embuste que nos fala, precisamente, da “fraude mais bela do mundo”.