Três gerações de jovens
“We look younger than we feel
and older than we are”
The National, It never happened
Não sei como foi a juventude dos meus avós, algures num interior pouco profundo, entre a lezíria ribatejana e as serras das Beiras. Sempre os conheci velhos, com as mãos e os rostos sulcados de uma vida no campo. Lembro-me, porém, de quando decidiram deixar de fazer romarias às casas dos filhos quando queriam ver as marchas populares na televisão e compraram uma televisão lá para casa. O pouco que soube sobre a juventude deles – a minha família mais anciã não era muito dada à partilha de memórias – não variava muito do que conheci, décadas depois. Campo, semeio, colheitas, gado, num ciclo perfeitamente delineado pelas sempre úteis dicas do Borda d’Água, pela forma como o vento soprava e pela cor do céu, ao anoitecer.
Dos meus pais soube mais, pouco mais. Nascidos no princípio da segunda metade do século XX, foram trabalhar para as fábricas das redondezas, pouco tempo depois de estrearem o fato comprado de propósito para o exame da 4.ª classe. Tinham 11 ou 12 anos e estávamos na década de 60. As refeições eram contadas, os restos aproveitados, o pão cozido para a semana toda, os bolos só nos dias de anos – e a salvo de um ou outro irmão mais guloso. Noutros pontos do país, o destino de crianças da mesma idade era em casas senhoriais em Lisboa ou no Porto, com as reminiscências de uma vida feudal. As oportunidades eram escassas para quem tinha poucas posses e para quem não queria deixar partir os filhos para longe, o destino fez-se traçar pela indústria que se foi desenvolvendo e em alguma sorte.
No centro do país ou no interior mais profundo de Portugal, a juventude de então estava a décadas de distância da juventude interventiva das universidades portuguesas e a séculos de distância dos movimentos juvenis que culminaram no Maio de 68 em França. Esta distância em nada se deveu à falta de perspicácia, falta de vontade de agir ou falta de inteligência, cruelmente falando, deveu-se sim à falta de conhecimento, à lentidão e à informação filtrada pelo regime fascista em que vivíamos. As peregrinações a Fátima intensificaram-se com as guerras coloniais, os medos, os esquemas e as protecções em relação aos que tinham idade para combater também. Aumentaram também os burburinhos, os diz-que-disse, a vontade de lutar contra o regime mesmo aqui e a vontade de partir, para fugir à guerra ou à pobreza.
O interior do país conheceu a revolução, de acordo com os meus pais, com um desses “diz que” aconteceu qualquer coisa lá para Lisboa. Muito se passou nos anos que se seguiram, com uma Constituição nova, regressos de militares e de políticos, medidas mal implementadas, mas sob o desígnio da liberdade.
Nasci uma mão-cheia de anos antes da adesão de Portugal à CEE. O interior do país não tinha mudado substancialmente no seu ostracismo em relação às grandes metrópoles, mas a pouco e pouco viam-se serem construídas estradas, muitas estradas. A agricultura era agora para velhos, por isso já ninguém cultivava. O desprezo pelo que era natural era mais do que muito, vi oliveiras quase centenárias serem deitadas abaixo para se plantarem oliveiras da CEE, que o nosso primeiro-ministro de então classificava como um passo progressista. As oliveiras da CEE não deram, até aos dias de hoje, azeite que preste, assim como as políticas de então revelaram ser um erro crasso. O respeito pelo que era antigo também era inexistente, com prédios mamarrachos a serem construídos e que ainda hoje existem em todas as cidades deste país.
Nos anos 80, os carros não tinham cinto nos bancos de trás, só tínhamos dois canais de televisão se não tivéssemos uma parabólica que prometia um sem fim de canais em línguas indecifráveis. Em minha casa, o segundo canal só se via em dias sem vento, algo raro na aldeia em que cresci. O que se apanhava bem era a Rádio Voz Entroncamento, para onde ligávamos para pedir uma ou outra música para gravarmos em cassete, com uma oração na ponta da língua para o locutor não falar por cima e estragar a gravação. De quinze em quinze dias, durante as férias de Verão, uma carrinha-biblioteca da Gulbenkian percorria as estradas do interior do país para levar a leitura a muitos sítios mais ou menos recônditos e de repente era como se fosse Natal e o tédio das férias grandes era trocado pelo lufa-lufa para ler os livros que sobejamente requisitávamos.
O país ia-se desenvolvendo, mas ainda andei na Telescola nos 5.º e 6.º anos, projecto iniciado durante o regime para combater o analfabetismo e que consistia tão e somente nisto: tínhamos um professor que dava todas as disciplinas e tínhamos como suporte aulas em cassete de vídeo. O país ia-se desenvolvendo, mas no interior do país desenvolvia-se mais lentamente, as ofertas culturais tardavam em chegar. Ainda me lembro da desilusão que senti por os meus pais não me deixarem ir ver os Delfins às Festas da Cidade, na altura em que eram übercool (e bem sei que esta é a parte mais inverosímil). Os jovens, esses, eram apontados como sendo a Geração Rasca, a geração que não fazia nada, a Geração X, os que passavam demasiado tempo a ver televisão.
A pouco e pouco, os computadores começaram a ganhar espaço nas nossas vidas. Depois de um sistema muitíssimo rudimentar que dava para fazer muito pouca coisa, começámos a falar com pessoas que não conhecíamos por mIRC, em salas de chat de letras gordas. Quando chegou o ano 2000, já era possível guardar 2 fotografias numa disquete, devidamente embrulhada em papel de alumínio para não desfragmentar por causa das ondas electromagnéticas, ou parecido. Quando se deu a viragem do milénio e percebemos que afinal o mundo não acabaria nem os computadores rebentariam, já eu estava na universidade, em Lisboa.
Sair de um sítio pequeno para uma cidade como Lisboa pode ser penoso. Aprende-se a ser independente à força. No início do milénio, uma transferência bancária demorava 5 dias, por isso qualquer deslize nas contas representaria ou pedir dinheiro emprestado ou comer arroz com atum ao almoço e ao jantar. No início do milénio, o Chiado não era o sítio mais trendy deste mundo e o Cais do Sodré era zona proibida a um jovem mais incauto. Lisboa não era visitada por milhões de pessoas e uma viagem de avião para um país qualquer no centro da Europa custava uns 100 contos, o que quer dizer 500 euros.
Tivemos a Expo’98, tivemos o Euro 2004, dissemos adeus ao escudo e olá ao euro, mas o fosso entre o litoral e o interior persistia e ainda persiste. As diferenças estão agora mais atenuadas pela facilidade da informação, pelas oportunidades, pela facilidade de chegar. Ser-se jovem no interior, actualmente, já não é o antíctone de ser-se jovem numa grande cidade. Tudo está bastante mais à mão, a cultura está a ser cada vez mais reconhecida como essencial e é possível viajar-se por relativamente pouco dinheiro.
No artigo “A Era da Adolescência” de Jon Savage, publicado na revista Electra deste trimestre (n.º 5), fala-se sobre a adolescência como a “segunda fase da vida”, circunscrita por G. Stanley Hall, no início do século XX, como o tempo entre os 13 e os 24 anos. O ser-se jovem, ser-se adulto e ser-se idoso parecem não ter delineações concretas, ou as que têm vão mudando com o tempo e com a percepção de cada um. À medida que vamos envelhecendo percebemos que ter-se 30 anos não é ser velho. Ter 40 anos, também não. Ter 50, também não. E não é preciso recorrermos a ditados ou chavões, vivemos mais e vivemos melhor agora e as delimitações etárias adaptam-se. Recorrendo a chavões, a idade está na cabeça de cada um e não é preciso pensarmos em muitos “jovens prodígios” para percebermos que há almas de 80 anos em corpos de 22 e vice-versa.
“O mesmo movimento que produz a velhice também produz a «juventude». Este corte sobre a vida e as suas idades é uma das formas dominantes da «biopolítica» atual.”
José Bragança de Miranda, Revista Electra n.º 5
Comecei por falar dos meus avós e das suas vidas de campo. Pelos meus pais, que começaram a trabalhar com 11 ou 12 anos. Por mim, que curava o tédio das férias de Verão com os livros requisitados na Biblioteca itinerante da Gulbenkian. O meu sobrinho, de 13 anos, já viajou para 3 continentes. Todos nós sabemos que a Humanidade, como a conhecemos, está a passar pela maior crise de sempre, sem solução aparente. Todos nós sabemos que a precariedade laboral está na ordem do dia, principalmente entre os mais jovens, e todos nós sabemos que a intolerância cresce em muitos recantos da nossa sociedade. Não é raro ouvir alguém de mais idade dizer que a os jovens de agora não sabem fazer nada, são preguiçosos e egoístas, vivem virados para os telemóveis. Não é raro ouvir jovens dizer que, como existe agora um acesso muito alargado à informação, são a geração mais qualificada de sempre. Na realidade, desde sempre que todas as gerações são mais qualificadas do que a anterior.
“Falo – sei bem – como utópico. Mas ou somos utópicos ou desaparecemos.”
Pasolini, citado no artigo de Vinícius Nicastro Honesko “Pasolini e a possibilidade de exceder o poder” na Revista Electra n.º 5
O idoso que foi adulto e foi jovem terá de reconhecer, até por alguma honestidade intelectual, que os jovens de hoje não são a pior geração que este mundo já viu. O adulto que foi jovem deverá fazer o mesmo exercício. O jovem de hoje, a bem de alguma honestidade intelectual, deverá reconhecer que, na catadupa de informação que tem nas pontas dos dedos, não será pior, nem melhor, nem diferente, dos jovens que os adultos e os idosos foram, só tem ferramentas diferentes. As ferramentas diferentes não significam que os jovens tenham os mesmos desafios. Não têm. Mas também não quer dizer que tenham uma vida mais dificultada, porque é bastante provável que não tenham, os desafios são diferentes, as vidas também. Não é virando as costas uns aos outros, com rótulos de gerações x, y ou z, com egocentrismos e superioridades, com egoísmo e má vontade, que nos salvamos. Seja com que idade for.
A revista Electra é um projeto da Fundação EDP lançado em março de 2018. É uma revista trimestral de pensamento e de crítica, conta exclusivamente com trabalhos originais de pensadores nacionais e estrangeiros. É editada em português e em inglês. A revista é vendida nas bancas, em livrarias, na loja do MAAT e online (aqui).