Tudo brilha em ‘Why Hasn’t Everything Already Disappeared?’, dos Deerhunter
Os Deerhunter lançaram o disco Halcyon Digest no virar desta década, na altura do pico do indie rock. Mesmo fora desse contexto cronológico, é daqueles álbuns que definem uma carreira, funcionando como uma confirmação da qualidade que os álbuns anteriores já demonstravam. Desde então, sente-se que a sua música é sempre analisada através do crivo desse disco – é essa a sina de lançar uma obra assim. No entanto, três álbuns se passaram desde 2010 e o que se verificou foi uma cimentação da certificação de qualidade a que o nome Deerhunter está associado nos círculos alternativos. O som da banda é irrequieto, passando pelo ambient punk dos seus primórdios, shoegaze, garage rock, dream pop, com influências musicais dos anos 60 e 80, de música negra… tudo isto unido pela característica voz de Bradford Cox, o carismático vocalista, os temas mórbidos de grande parte das letras e as melodias de guitarra de tom sépia.
Why Hasn’t Everything Already Disappeared? surge como um álbum de ficção científica sobre o presente. É o ponto de charneira entre a música do passado e os temas do futuro, ambos presentes no dia de hoje pela sua intemporalidade. Porque há sempre passado e há sempre futuro, mas é no presente que eles se vivem. O álbum dá ares de ter consciência, como se fosse uma entidade viva e ciente do que se passa à sua volta.
Um dos primeiros momentos de animismo musical chega em “No One’s Sleeping”, em que a letra remete para tempos de agitação e perigo, que não deixam que a humanidade descanse. Foi o assassinato de Jo Cox, membro do Parlamento britânico, em 2016, por um homem com distúrbios mentais e pontos de vista neo-nazistas, que deu origem a esta letra, o que explica a sua carga social. No entanto, é a união das palavras à música que faz a canção realmente pairar. A entrega vocal de Bradford Cox, que saltita pela escala musical, e os sintetizadores de pano de fundo, dão à letra uma aura de sonho febril, sendo fácil imaginar casas e casas com luzes acesas durante a noite inteira, por receio. No entanto, é nas pontes instrumentais que essa ideia descola, com as trompetes gloriosas a não deixarem mesmo ninguém dormir, mas por escolha própria. Por fim, o outro eleva ainda mais a fasquia melódica, tornando esta uma das canções mais ricas da carreira dos Deerhunter.
Este é um álbum assumidamente político, que principalmente ataca o conformismo. “What Happens to People?” indaga os motivos pelos quais as pessoas deixam as suas emoções morrer, perdendo assim a capacidade de resistir e desistindo dos seus próprios sonhos. A canção faz o luto dessas emoções, com uma melodia que remete para as canções nocturnas mais limpas de Monomania, como “Sleepwalking” ou “The Missing”. “Futurism” abre logo com a ideia de uma prisão individual e uma das frases mais pungentes do disco (“Your cage is what you make it, if you decorate it”). É uma provocação, mas talvez também um conselho. Pelo meio, “Call it what you want dear – I call it ‘fear'” faz-nos olhar para a nossa conduta relativamente ao que se passa na nossa sociedade.
“Détournement” é, como o nome indica, uma viragem. Détournement foi uma técnica adoptada pelos situacionistas – um grupo de pensadores avant-garde de meados do século passado, que desenvolveram uma crítica ao capitalismo utilizando várias áreas artísticas – que envolvia utilizar os meios do próprio capitalismo contra si mesmo. Talvez por isso esta canção abra a segunda metade do álbum de uma forma algo metafísica. Numa tentativa de descrição, pode dizer-se que soa a uma espécie de banda sonora de um filme educativo dos anos 80 ou vídeo de apresentação de um hotel futurista desenhado nessa mesma altura. Soa a algo que encontraríamos numa cassete desempoeirada de um descampado qualquer. A voz processada new age de Cox leva-nos à volta do mundo, com frases incompreensíveis acerca de arte, liberdade, espiritualismo e natureza.
Mas não só de temáticas concretas ou crítica social se faz este álbum. As letras crípticas muitas vezes servem mais como veículo para as melodias e ritmos focados da banda. “Plains” é uma das canções mais directas da banda, pela sua qualidade dançável e pelo optimismo, apesar das palavras negativas que a vão pontuando. A riqueza percussiva dá um ímpeto à canção, voando até ao refrão de sintetizadores brilhantes – que, aliás, povoam todo o álbum. Aqui, a palavra ‘brilhante’ deve ser tomada de forma literal; desde o cravo do início de “Death in Midsummer” até aos sintetizadores que fecham “Nocturne”, as notas parecem cintilar no meio da produção granulosa dos ritmos.
Como tem vindo a ser apanágio da banda, há sempre pelo menos uma canção da autoria do guitarrista Lockett Pundt (também conhecido pelo seu projecto a solo, Lotus Plaza) em cada álbum. Desta feita, é “Tarnung”, um dos elementos estranhos do álbum – e isto é um elogio. É uma canção contemplativa e melancólica, pontuada por sopros funéreos e coros angelicais. Depois da nebulosa “Ad Astra”, do álbum anterior, é bom ouvir uma canção com a sensibilidade melódica de Pundt apresentar um foco mais bem definido, ainda que invulgar.
Numa entrevista recente, Bradford Cox perguntou-se se alguém ouviria Why Hasn’t Everything Already Disappeared? do início ao fim, nesta época em que a atenção que dedicamos a algo se reduziu a quase nada. Ainda assim, a banda achou que devia publicar esta obra. Enquanto houver arte, haverá público. Não poderemos afirmar com certeza que muita gente ouvirá o disco, mas garantimos que vale a pena.