Um português e um brasileiro entram num bar: conversas sobre a Língua Portuguesa
Para quem atentamente segue as carreiras de Ricardo Araújo Pereira e/ou Gregório Duvivier, já conhecia por certo o espectáculo que apresentaram há uns anos, no Brasil. Num registo muito informal, de conversa, perseguiam breves ideias sobre a língua portuguesa, em busca de um ângulo humorístico, e poucos ficaram indiferentes àquele tão curioso encontro entre os dois. Volvidos cerca de quatro anos, o espectáculo chegou a Portugal para apresentações esgotadas no Tivoli BBVA e Aula Magna, em Lisboa, e também no Sá da Bandeira, no Porto.
“A língua portuguesa é uma paixão que a gente [Gregório e Ricardo] tem em comum“, diz-nos, em conversa diferida, Gregório Duvivier, “e é uma fonte inesgotável de humor. O humor fala muito sobre os nomes das coisas, as coisas sem nome, as coisas que têm o mesmo nome, e os dois nomes diferentes para a mesma coisa: isso tudo é fonte de humor. Mesmo que ninguém estivesse olhando, estaríamos a discutir aquilo. É um assunto que nos apaixona“. No dia em que o Benfica jogou contra o Barcelona — terminaria empatado a zeros, para alguma satisfação do Ricardo — e pouco após o Gregório conhecer a palavra javardo (que pronuncia je-vardo), há muitas observações desse teor em palco, conduzidas, aparentemente por tópicos, onde um começa logo após o outro terminar.
É um exercício interessante, e em certa medida até meta, discutir sobre o meio que possibilita a discussão. Há momentos já conhecidos do público, sobretudo pela parte do Ricardo (a distinção entre ser e estar, que fazemos, ao contrários dos ingleses ou franceses, ou os problemas introduzidos pelo Acordo Ortográfico, com especial nota para as arquitetas que nos levam ao engano), e eis então que a experiência exterior do Gregório nos alumia ambiguidades e contrasensos a que nunca prestámos grande atenção: a expressão “sempre vens cá?”, dita com a intenção de confirmar que “alguém vem cá hoje“, parece a um brasileiro ser convite para a perpetuidade — vens cá sempre?. Impressiona o à-vontade de ambos durante a conversa, deixando-a conduzir naturalmente, e reagindo por vezes ao outro; é nesses momentos, e também no contacto com o público, que se nota a cumplicidade de ambos e a ágil destreza mental que transforma algo que ouvem numa ideia, à qual respondem com sagacidade.
São relatos de experiências pessoais, que partem ora de estudos fronteiriços a interesses académicos (como a consulta num dicionário de intraduzíveis, pelo Ricardo, das palavras saudade e chulé), ora de uma atenção especial que ambos dedicam a estes fenómenos da língua. Curiosamente, no caso do uso da palavra sempre para designar o seu quase-contrário desta vez, confessa Gregório ter surgido num destes encontros com o público, quando ambos abrem a discussão à plateia e reagem às interpelações. Na sessão a que fui, muitos dos intervenientes eram brasileiros ou portugueses relatando histórias com brasileiros, o que pessoalmente contribuiu para sentir que temos de facto um património riquíssimo, que verdadeiramente pertence aos dois.
No entanto, todas as línguas atravessam um momento complicado — dado que cada vez se lê menos, e há um menor rigor na ortografia — mas, no nosso caso em particular, assistimos à estranha miscigenação do português de Portugal e do Brasil nos mais jovens, devido à exposição a muito conteúdo digital. Depois do violento ataque imposto pelo Acordo Ortográfico, que alterou a grafia alumiada por um desnorte autêntico, este poderia ser mais um rude golpe na nossa língua, mas Duvivier aceita-o com naturalidade. “A língua é viva e caminha independentemente das nossas vontades; e está sempre a ser contaminada: hoje em dia é pelo Youtube, mas antes era pela televisão e pelas novelas, e antes disso pela literatura”. Depois, demonstra como o português sempre foi amplamente contaminado por estrangeirismos — “algumas palavras vêm do latim, outras do galego, e muitas, muitas, do castelhano”. E aparentemente, há muitas palavras que provêm do castelhano: *”a palavra *interessante* não existe no latim; é uma palavra inventada por castelhanos, que depois vem para o Brasil, e daí para a França…*”
Naturalmente, a língua não é estanque, e muda. E com os tempos, mudam também a sua expressão e a sua forma. De facto, é difícil ficar indiferente a um processo que lenta mas assertivamente decorre na nossa cultura, de aceitação de outras línguas que convivem com o português (como o crioulo). Este espectáculo, que esgotou por todo o país, trouxe alguma esperança de um maior carinho pela língua, demonstrando que há quem a trate bem, esteja atento às suas necessidades, e aponte à beleza de um património maior que as nações.