Uma bandeira de Reiquiavique
Neste período de quarentena, em que nos vemos obrigados a parar fisicamente, não há limites para onde a nossa mente nos pode levar. Olhando à volta do meu quarto, vejo objectos trazidos de viagens que fiz no passado e que, instantaneamente, espoletam memórias das mesmas. É uma forma de escapismo momentâneo que traz algum conforto em tempos incertos. Deixem-me levar-vos numa viagem à volta do meu quarto.
O terceiro objecto é uma bandeira que trouxe de Reiquiavique, capital da Islândia. O meu destino de sonho desde há muitos anos, a ilha famosa pela sua qualidade de vida, paz e paisagens vulcânicas apaixonantes foi o cenário da primeira viagem que fiz sozinho.
Há uns anos, tive a oportunidade de fazer Erasmus em Dublin. Estava a meio caminho entre Portugal e o meu destino de sonho, a Islândia, e decidi que não poderia deixar passar a oportunidade de o visitar. Fi-lo sozinho e, com o meu parco rendimento de estudante, consegui fazer uma viagem de orçamento baixo (na medida do possível para um dos países mais caros do mundo).
Cheguei no Dia do Trabalhador a Reiquiavique, onde, por tradição local, o Verão havia começado na primeira quinta-feira após o dia 18 de Abril. Tendo em conta a chuva, o vento e os 2 graus que se faziam sentir nos ossos, foi o Verão mais frio que alguma vez experienciei. Apesar disso, fiz os possíveis para me armar em turista na capital islandesa — que, de resto, não tem muito que se lhe diga. Mas eu estava nas nuvens por simplesmente estar a riscar um objectivo da minha bucket list. A ilusão de tudo isto ser um sonho — o que, tristemente, já me tinha acontecido — foi definitivamente quebrada quando assisti à parada do Dia do Trabalhador, que circulava por uma das ruas pedonais do centro, e uma criança me entregou uma pequena bandeira da Islândia com um sorriso nos lábios. Senti-me bem-vindo.
Mas não podia ficar apenas por Reiquiavique. Tinha um aluguer de carro alinhavado, para dar a maior volta que conseguisse nos poucos dias que tinha, mas na altura ainda era inocente e não sabia que precisava de um cartão de crédito, por isso tive de cancelar a reserva (as coisas que se aprendem com os erros). Com a esperança em baixo, passei o serão no lounge do hostel onde estava hospedado — onde nem podia beber uma cerveja sem gastar no mínimo um montante na casa das dezenas.
Acabei por conhecer dois amigos indonésios que tinham um carro alugado, mas não um plano certo., simplesmente queriam ver gelo, no país que o tem no nome. Ouviram-me a falar com outras pessoas sobre todas as coisas que queria ver no país e ficaram impressionados com o meu conhecimento (que na verdade não era nada de mais). Ofereceram-me boleia com eles para uma viagem de ida e volta no dia seguinte, em troca de que eu tratasse do roteiro. Foi realmente a simbiose ideal.
O destino final era a praia de areia negra perto de Vík. Até lá, passámos pelo vale de Reykjadalur para tomar um banho num rio morno e pelas cascatas Seljalandsfoss — por detrás da qual se pode passar e onde, em dias de sol, vemos um constante arco-íris — e Skógafoss, com muitas paragens para fumar. Se desconhecia o vício em tabaco dos indonésios, passei a conhecê-lo na primeira pessoa. Claro que, como convidado, sorria e acenava, mas na verdade as pausas deixavam-me impaciente. Felizmente era Maio e o sol só se pôs por volta das 23, permitindo um passeio bastante longo.
À noite, quando regressámos ao hostel, recebi a notícia de que um anfitrião de Couchsurfing em Akureyri tinha aceitado o meu pedido de alojamento para o dia seguinte, que havia feito na altura em que ainda idealizava a minha própria viagem à volta do país. O problema? Akureyri fica no norte do país, a quase 400 quilómetros de Reiquiavique. Impulsivamente, decidi que ia tentar a minha sorte à boleia, porque só se vive uma vez e eu andava a braços com um conflito interno sobre ser mais espontâneo. Mas eis que os meus anjos da guarda indonésios aparecem e decidem ir para o norte comigo, mudando também os seus planos. Eu não sei mesmo o que fiz para os merecer.
Assim foi, e no dia seguinte fizemos o longo trajecto para o norte do país, passando por planícies desoladamente lindas, fiordes impressionantes e cavalos selvagens com as melhores crinas de sempre. Depois de explorar Akureyri e as paisagens de Eyjafjörður, o fiorde onde a cidade se encontra, fiz amizade com os meus anfitriões de Couchsurfing, dois espanhóis que também tinham amigos a visitá-los. No dia seguinte, esses amigos regressariam a Reiquiavique e ofereceram-me boleia, com direito a parar numas termas — que acabei por também ser eu a escolher, decidindo-me pelas poças de Grettislaug, onde Grettir, personagem de uma saga islandesa da Idade Média, se terá banhado após nadar mais de 7 quilómetros da ilhota de Drangey até ao local onde agora encontramos as pequenas piscinas.
De volta à capital, triste por ter de regressar já no dia seguinte, reflecti sobre a sorte que tive. Não só tinha visitado o país dos meus sonhos, que foi tudo aquilo que imaginava e ainda mais, como o fiz de uma maneira invulgar para mim, com direito a conhecer pessoas generosas e interessantes. Na mala de regresso, levava a bandeira que me recordaria para sempre da primeira viagem que fiz sozinho.
De volta à Irlanda, pendurei a bandeira no meu quarto, que acabei por deixar esquecida quando o período de Erasmus acabou e regressei a Portugal. Um ano depois, ao reencontrar-me com uma das pessoas que fizeram parte da minha estadia irlandesa, finalmente regressou à minha posse. Neste momento, é o objecto mais elevado nas paredes do meu quarto, representando a posição do país no mapa europeu e na minha lista de sonhos cumpridos.